quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Cinco poemas de Ferreira Gullar



Uma pedra é uma pedra

uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa


Toada à toa

A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.
Pois é certo que o vivido
– na alegria ou desespero –
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.


Off price

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado
e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


Nem aí...

Indiferente
ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema


Perplexidades

a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo 

e todo o existir consiste nisto
é estranho!

e mais estranho
ainda
me é sabê-lo

e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo 

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado


Ferreira Gullar nasceu a 10 de setembro de 1930, em São Luís, Maranhão. Sua carreira se compôs com produções na crítica, no ensaio, na ficção, na dramaturgia e na poesia. Publicou o primeiro livro ainda aos dezenove anos, Um pouco acima do chão, que seria renegado mais tarde quando organizou sua poesia completa. O poeta considera a A luta corporal (1954) sua verdadeira estreia. Depois vieram títulos como O formigueiro (1955), Poema sujo (1976) e Muitas vozes (2000). Em 2010 recebeu o mais importante prêmio concedido a autores de língua portuguesa, o Camões. Morreu a 4 de dezembro de 2016.


Os  poemas foram coletados do Portal Literal.


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