sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Beatriz

Bandeirante a sonhar com pedrarias
Com tesouros e minas fabulosas,
Do Amor entrei, por ínvias e sombrias
Estradas, as florestas tenebrosas.

Tive sonhos de louco, à Fernão Dias…
Vi tesouros sem conta: entre as umbrosas
Selvas, o ouro encontrei, e o ônix, e as frias
Turquesas, e esmeraldas luminosas…

E por eles passei. Vivi sete anos
Na floresta sem fim. Senti ressábios
De amarguras, de dor, de desenganos.

Mas voltei, afinal, vencendo escolhos,
Com o rubi palpitante dos seus lábios
E os dois grandes topázios dos seus olhos.




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Publicado inicialmente em Blog dos Poetas.

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Dois poemas de José Gomes Ferreira




Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação. 


*

Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira. 

José Gomes Ferreira nasceu em 9 de junho de 1900, no Porto. Escritor, poeta e ficcionista, formou-se em Direito em 1924, tendo sido cônsul na Noruega entre 1925 e 1929. Após o seu regresso a Portugal, enveredou pela carreira jornalística. Foi colaborador de vários jornais e revistas, tais como a Presença, a Seara Nova e Gazeta MusicalTodas as Artes. Esteve ligado ao grupo do Novo Cancioneiro, sendo geral o reconhecimento das afinidades entre a sua obra e o neo-realismo. Autor de obra vasta, de sua poesia se destacam títulos com Lírios do monte, o primeiro do gênero, apresentado precocemente em 1918, Longe (1921) e Poeta militante 1, 2 e 3 (1978). Morreu no dia 8 de fevereiro de 1985.   

domingo, 24 de outubro de 2010

Dois fragmentos de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima



Canto 1: Fundação da ilha

1

Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memórias,
vai lembrado de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias e descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vária mastreação,
mastros que apontam caminhos
a países de outros vinhos.
Esta é a ébria embarcação.

Barão ébrio, mas barão,
de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão.

Canto IV: As aparições

1

Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.

A abóbada estreita
mana a loucura cotidiana.

Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.

O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.

Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?

Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.

E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.

Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, o dia.

Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.


Jorge de Lima nasceu em 1893, em União dos Palmares, Alagoas. Médico, exerce e a profissão em paralelo ao ofício de escritor e de uma atividade política que o obrigará a transferir-se para o Rio de Janeiro, em 1930. Em Maceió, convive com um grupo do qual faziam parte José Lins do Rego, Raquel de Queirós e Graciliano Ramos. Seu consultório carioca será um importante ponto de encontro entre artistas e intelectuais. Expressa em uma voz cheia de imagens e sonoridades marcantes, sua obra multifacetada está intimamente ligada à afirmação da estética modernista. Dentre os livros que publicou, podemos destacar Invenção de Orfeu, Poemas negros Calunga. Morreu em 1953.

sábado, 23 de outubro de 2010

Dois poemas de Eugénio de Andrade


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.


Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava. 
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis. 


Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.


Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração. 


Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.


Adeus.


NÃO O PROCURES

Não o procures perto do mar,
não o procures
nas colinas.
Se o não descobres nos fenos,
se o não pressentes nas fontes,
procura-o nesta canção.
O seu canto vem de outro rio,
a fêmea de outro lugar.
Só quem ama assim as aves
traz o sol todo na mão.
O pão alvo está na mesa,
as azeitonas, o vinho,
ao lado a rosa, também ela
trazida de outra canção.
Não tardará que o melro branco
venha comer contigo
e com a luz fina de abril.

Assim há-de cantar um dia
a terra
o seu coração pueril.

Eugénio de Andrade foi nome adotado por José Fontinhas desde quando iniciou sua carreira artística. Nasceu no dia 19 de janeiro de 1923, no Fundão, distrito de Póvoa de Atalaia; viveu em Lisboa e Coimbra antes de fixar residência no Porto, onde viveu até sua morte em 13 de junho de 2005. Publicou o primeiro livro, Narciso, em 1940, porta que se abriu para mais de duas dezenas de títulos entre poesia e prosa, além das participações em antologias. Trabalhou como tradutor e para o português verteu obras de poetas como Federico García Lorca. Dentre os diversos prêmios que recebeu estão o Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e o Camões.


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Três poemas de Pablo Neruda




EU NÃO ME CALO

Perdoe o cidadão esperançado
minha lembrança de ações miseráveis,
que levantam os homens do passado.

Eu não preconizo um amor inexorável.

E não me importa pessoa nem cão:
só o povo me é considerável:
só a pátria me condiciona.

Povo e pátria manejam meu cuidado:
Pátria e Povo destinam meus deveres
e se logram matar o revoltado
pelo povo, é minha Pátria quem morre.

É esse meu temor e minha agonia.

Por isso no combate ninguém espere
que fique sem voz minha poesia.


A AFOGADA DO CÉU

Tecia mariposa, vestimenta
pendente das árvores,
afogada no céu e à deriva
entre fissuras e chuvas, só, só, compacta,
com roupa e cabeleira feito bandeiras
e centros corroídos pelo ar.
Imóvel, resistes
à romba agulha do inverno,
rio de água irada que te acomete. Celeste
sombra, ramo de pombas
roto de noite entre as flores mortas:
detenho-me e sofro
quando como um som lento e repleto deste frio
propagas o teu arrebol golpeado pela água.


JUVENTUDE

Um perfume como uma ácida espada
de cerejas num caminho,
os beijos do açúcar nos dentes,
as gotas vitais resvalando nos dedos,
a doce polpa erótica,
as eiras, os paióis, os incitantes
lugares secretos das casas amplas,
os colchões dormidos no passado, o acre vale verde
olhado de cima, da vidraça escondida:
toda a adolescência molhando-se e ardendo
como uma lâmpada derrubada na chuva.

Pablo Neruda nasceu a 12 de julho de 1904 em Parral. Estudou Pedagogia e Francês na Universidade do Chile, período quando começa a se apresentar como escritor: data de então o terceiro lugar num concurso do jornal A Manhã, o primeiro lugar na Festa da Primavera e as primeiras publicações — Crepusculário sai em 1923. É quando se interessa também pelas vanguardas, influência que se reparará em três plaquetes publicadas na década seguinte: O habitante e sua esperança, Anéis e Tentativa do homem infinito. Torna-se diplomata e estabelece relações com nomes da literatura ao redor do mundo: Federico García Lorca, Rafael Alberti, Vinicius de Moraes, entre outros. Dos livros que publicou, destaca-se Nasci para nascer. Em 1971, torna-se o segundo poeta do seu país a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em Santiago a 23 de setembro de 1973.



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Dois poemas de José Paulo Paes




Canção do afogado

Esta corda de ferro
me aperta a cabeça,
não deixa meus braços
se erguerem no ar.
E o mar me rodeia,
afoga meus olhos.

Maninha me salve
não posso chorar!

Minha mão está presa
na corda de ferro
e os dedos não tocam
a rosa que desce,
que afunda sorrindo
nas águas do mar.

Maninha me salve
não posso nadar!

Algas flutuam
por entre os cabelos,
meus lábios de sangue
palpitam na sombra
e a voz esmagada
não pode fugir.

Maninha me salve
não posso falar!

E a rosa liberta,
a inefável rosa,
vai longe, vai longe.
Um gesto é inútil,
meu grito e meu pranto
inúteis também...

Maninha me salve
que eu vou naufragar!


De senectute

já antecipa a língua
afeita à alegoria
na carne da vida
o verme da agonia

já tritura o olho
no gral da apatia
o carvão da noite
a brasa do dia

já se junta um pé
a outro em simetria
de viagem além
da cronologia

já por metafísico
o medo anuncia
sua máquina de espantos
à alma vazia



José Paulo Paes nasceu em Taquaritinga, interior de São Paulo, em 1926. Estudou química industrial em Curitiba, onde publicou seu primeiro livro de poemas, O aluno, em 1947. Trabalhou num laboratório farmacêutico e numa editora de livros, aposentando-se em 1981 para poder dedicar-se inteiramente à literatura. Publicou mais de dez livros de poesia, inclusive para o público infanto-juvenil, e foi colaborador regular na imprensa literária. Destacou-se também como ensaísta e tradutor de poesia. Morreu na capital do estado, em 1998.

Dois poemas de Valentim Magalhães

 
TORTURA

A Adelino Fontoura
 

Ante a mesquita d’áureos minaretes
Açoitam dois telingas a traidora;
As vergastas, sutis como floretes,
Sibilam sobre a carne tentadora.
 
À vibração das varas, estremecem
Seus níveos membros firmes, delicados,
E, nos espasmos do sofrer, parecem
Das contorções do gozo eletrizados.
 
Geme aos golpes, que as carnes lhe retalham,
E aberta a rósea boca, os olhos belos
Pérolas vertem, que seu peito orvalham;
 
Dobram-se as curvas, soltam-se os cabelos,
E do alvo colo, amargurado e exangue,
— Como esparsos rubis — goteja o sangue.
 
 
MEDALHÕES DE ATRIZES

Chloé púbere apenas, fresca aurora
De mulher; linhas nobres de palmeira
Moça, em que a seiva exuberante aflora
E que agita as espátulas, faceira.

Nos olhos a alegria sobranceira
De voar, azas abertas, vida em fora.
Na voz tem da menina a derradeira
Gama e as primeiras notas da senhora.

Nervos cruéis, de velho stradivarius,
Em que uma herança de paixões ressalta,
Torturando-os, febris, tumultuários.

Quando surgiu, radiosa, no proscênio,
Apagaram-se as luzes da ribalta,
E a sala encheu-se da manhã de um gênio.
 
Valentim Magalhães nasceu a 16 de janeiro de 1859 no Rio de Janeiro. É autor de vasta obra, com produções na prosa e na poesia. Machado de Assis disse sobre o poeta — o que se repetiu variamente na crítica, vide Silvio Romero — que “as ideias dele são geralmente de empréstimo; e o poeta não as realça por modo de ver próprio novo.” Integrado ao fazer parnasiano, escreveu livros como Cantos e lutas e Rimário. Formado em Direito na faculdade de São Paulo, onde colaborou com vários periódicos desta cidade; no retorno ao Rio, dirigiu o jornal A Semana, no qual levou adiante o tratamento de propagandista da abolição e pela República. Atuou na fundação da Academia Brasileira de Letras. Morreu a 17 de maio de 1903.
 
 

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dois poemas de Elizabeth Bishop





CIRQUE D'HIVER 

É um brinquedo de corda digno de um rei
de uma outra era: cavalo e bailarina.
Um cavalo de circo, de olhos negros,
branco no pelo e na crina
Sobre ele vai montada a bailarina.

Na ponta dos pés, ela rodopia.
Tem um ramo de flores artificiais
na saia e no corpete de ouropel.
Sobre a cabeça, traz
um outro ramo de flores artificiais

A cauda do cavalo é puro Chirico.
É formal e melancólica sua alma.
Ele sente em seu dorso a perna leve
da bailarina calma
em torno da haste que a perfura, corpo e alma,

e lhe atravessa o corpo, saindo por fim
sob seu ventre como uma chave de lata.
Ele dá três passos, faz uma mesura,
anda mais um pouco, dobra uma das patas,
anda, estala, pára e olha para mim.

A dançarina, a essa altura, está de costas.
O cavalo é o mais arguto dos dois.
Entreolhamo-nos, com certo desespero,
e dizemos depois:
“É, até aqui chegamos nós dois”.


UMA ARTE

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.



Elizabeh Bishop nasceu em Worcester, no dia 8 de fevereiro de 1911. Considerada uma das mais importantes poetas de língua inglesa do século XX, sua obra é composta por poemas, ensaios, textos críticos e reportagens. Recebeu, m 1956, o Prêmio Pulitzer de Poesia pelo livro North & South – A Cold Spring, o National Book Award e o National Book Critics Circle Award; foi a primeira mulher a receber, em 1976 o Prêmio Neustadt. Morreu no dia 6 de outubro de 1979.

* Traduções de Paulo Henriques Britto.


terça-feira, 19 de outubro de 2010

Factus est

O que fez o verão também fez
esta água parada água de mal viver.
Fez o dia de cacto e macambira, o dia de sono e sol
sobre a sombra dos pequizeiros. Fez a luz nos olhos
das onças pretas. Os bichos bravos
pisando macio nas folhas secas. As passadas fundas
na areia das trilhas
onde os comboios de jumentos
levaram suas cargas
de carne-seca, farinha e rapadura.
O que fez da vida a selva escondida nos troncos
sob o sol. Fez os olhos da pedra
que vence os verões. Fez as palhas da carnaúba
e as águas cortadas
águas mornas
água de barro
água de cacimba
que a sede não refuga.
O que parou as águas fez irreal este silêncio
dos chapadões. Fez os bichos obstinados
de sol e de poeira: as cabras as formigas
os cupins o homem sóbrio
e os seus dias de mal viver.



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Publicado inicialmente em Antônio Miranda.

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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Dois poemas de Oswald de Andrade



Relicário

No baile da corte

Foi o conde d'Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí


Balada do esplanada

Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.
É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.

Eu queria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel
No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
É o hotel
Do menestrel

Pra me inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel

Mas não há, poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel

Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador


Oswald de Andrade nasceu a 11 de janeiro de 1890. É um dos nomes mais importantes na cena modernista do sudeste do Brasil; autor dos mais importantes manifestos introdutores do movimento no Brasil, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago. Autor de obras em prosa, teatro e poesia. Neste gênero destacam-se, dentre outros, Pau Brasil (1925), Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927) e Cântico dos cânticos para flauta e violão (1942). Morreu na mesma cidade natal, São Paulo, a 22 de outubro de 1954.

domingo, 17 de outubro de 2010

Canto primeiro - Preparação da viagem

Nem armas, nem barões, nem caravelas,
nem ilustres varões de grande fama,
nem feitos valorosos, nem aquelas
viagens de Cabrais, Vascos da Gama,
trarei para este poema, nem as velas
de antifas naus de gente lusitana,
por isso foi cantado em toda a parte,
por voz que surpreendeu de engenho e arte.

Não cantarei saudades reprimidas,
nem amores de Inês, posta em sossego;
não falarei das ninfas escondidas
nas lágrimas das fontes, no Mondego,
nem lembrarei batalhas esquecidas
nos longes de algum tempo antigo e cego:
direi de coisas várias neste poema,
que a vida coisas várias tem por tema.

Direi coisas perdidas na memória
das águas agitadas da existência,
tempo passado, estrada provisória,
que encontro em permanente confluência
na vida sempre tão contraditória,
nos dias que se vão, deixando ausências.
Direi palavras velhas sempre novas,
guardadas entre as cinzas de outras horas.

Direi coisas antigas: sonhos, viagens,
infâncias soterradas, velas, mastros,
continentes perdidos e visagens
de gigantes de pedra, estrelas, astros,
rotas, roteiros, quilhas, marinhagens,,
águas-marinhas verdes como pastos.
Também de coisas vãs direi aqui,
que muitas coisas vãs no mundo vi.


Redescobrindo os mares do passado,
à guerra neste poema me aventuro
nos ares nunca de antes navegados,
reconquistando reinos, mundo escuro
das lembranças de tempos sepultados
sob o peso dos dias, meses, anos
alegrias, tristezas, desenganos.

Mas na guerra que travo não há lutas
de gregos por Helenas raptadas,
nem cavalos de pau vindos das grutas
para invadir as Tróias sitiadas,
Outras batalhas são, contendas muitas,
e só palavras, armas empregadas...
Por isso nesta guerra esqueço Marte
e chamo Orfeu, qu aqui se trata de arte.

Para me acompanhar nesta jornada,
convoco Orfeu mais outras companhias:
Enéias que vitórias sempre via,
Ulisses, odisséias terminadas
e Beatriz mostrando a travessia
da selva escura às ilhas do mar largo,
Camões, Virgílio, Homero, ó Dante magno!

Ao tempo e ao mar entrego este poema,
memórias das palavras, mundo, infância,
possível solução deste teorema
que a vida nos impôs na circunstância
de nos trazer de volta ao mesmo tema:
lembranças de passados e distâncias
refeitas por batéis, ébrios enganos,
que nas águas do sonho navegamos.

Antigos labirintos desvendados
pelo fio do destino que nos deu
o acaso, a vida, o mundo, os nossos fados
e o teu futuro envolto em véus
que recobrem meus olhos fatigados
de navegar no mar que vai nos teus.
Seguindo os astros, ventos e caminhos,
te acompanhando sempre, vou sozinho.

E sobre as verdes ondas já me encontro,
içando as largas velas da poesia
ao vento marinheiro, ao grande sopro,
que espelha o cheiro forte a maresia,
iniciando a viagem, ou desencontro,
que ninguém sabe o que há na travessia
do oceano do tempo aprisionado
nas sombras das memórias sem passado.



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PAIVA, José Rodrigues de. Memórias do Navegante. 2 ed. Recife: Edições Dédalo, 2000, p. 21-26.



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sábado, 16 de outubro de 2010

Meu rosto

Sou tão sincero no que faço
que penso: Deus me segue,
sorrindo e abençoado no pecado.

Sou tão sincero no que penso,
que Deus me acompanha no passado,
— velho tributário do pecado.

Sou tão voraz por entre as coisas
que, não raro, com elas me confundo.
Daí que, fiel ao que elas são,

sei que Deus me abandona no que sou.
Como, então, não creditar
a Deus, Nosso Senhor,
a sorte de, a toda hora, ter desejos?



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Publicado por Antonio Miranda.


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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

De esguelha


 
a Ascendino Leite


três copos de chuva dançam
o peito alegre do tempo
já não mais sorri


dois pingos de sol cantam
o olho mareado do dia
já não mais sorri


um suspiro de vento baila
o braço cansado da noite
já não mais sorri


três braços de cansaço
duas marés de olhos
uma alegria do peito


na chuva sorridente
no sol sorridente
no vento sorridente


chega um tempo
de não mais sorrir


hora de dançar na chuva
hora de cantar ao sol
hora de bailar com o vento


chega um tempo
de esquecer o tempo
de penetrar o tempo


e
de viés
ser o tempo
por vir


como os sol enamorado da chuva
como o vento apaixonado pela noite


ser
quem sabe

como
de viés
a vida sabe ser


...................
Publicado incialmente no site Jornal de Poesia.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Um dos poemas mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade


Carlos Drummond de Andrade, a filha Maria Julieta e uma amiga, 1935.

NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra 
no meio do caminho tinha uma pedra. 

Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra 



Nota: Este poema de Carlos Drummond de Andrade foi publicado inicialmente na Revista de Antropofagia, em 1928 e depois incluído no livro Alguma poesia, de 1930;  é um dos poemas mais conhecidos da literatura brasileira com ampla repercussão no seu tempo e ao longo da história da nossas letras; tanto que, em 1967, o seu autor resolveu publicar uma compilação cujo intuito era o de ser uma biografia do poema. 

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Estreou na literatura em 1930 com a publicação de Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais da literatura brasileira como Sentimento do mundo, A rosa do povo e Claro enigma. Morreu no Rio de Janeiro em 1987. 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Três poemas de Augusto dos Anjos



VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável 

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!



PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


O MARTÍRIO DO ARTISTA

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!


Augusto dos Anjos nasceu no dia 20 de abril de 1884 no Engenho Pau d’Arco, interior da Paraíba. Começou sua formação escolar no Liceu Paraibano Joaquim Nabuco, quando começa a publicar em jornais suas primeiras composições: em 1902, por exemplo, aparece no jornal O comércio poemas como “Soneto” e “Cítara mística”, fortemente influenciados pela estética simbolista. A partir de então todas as publicações do poeta será através desse suporte já que só muito tardiamente conseguirá, a duras penas, financiar a publicação de seu único livro – Eu (1912). Foi aluno da Faculdade de Direito do Recife, professor de literatura no Liceu Paraibano, professor de Geografia na Escola Normal e no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Morreu em 12 de novembro de 1914 em Leopoldina, Minas Gerais, onde acabava de ocupar a função de diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira. 

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Quero seu olhar de sol

Sim, quero o seu olhar de sol,
Sem a venda intrusa que a poeira cobre e ofusca.
O Seu olhar é mirante de alegrias
Alegoria festiva, convidada para os carnavais.

Vejo uma dança branca em seu olhar de mel
Requebrando-se numa esquina azul,
Onde uma íris enfeitada de doçura,
Ensaia passos ao redor do palco âmbar.

Quero o seu olhar em irradiante luz,
Em terceira dimensão, com visões rosadas
De lírios se abrindo, num muro cor de primavera
Flambada de sol.

Vejo a retina do seu olhar vestida de cristais
Porque tudo nele é luz, claridade,
É potencial de distância alcançada
No seu doce e puro olhar de amor.

Quero o rio brilhando em seu olhar
Que aponta faróis incandescentes
E contempla o dia e a noite,
Com uma clareza certamente pródiga.

E beijo o calor que emana do seu olhar
Nele um bafo de anjo já suspira
Anunciando o novo dia,
A nova luz do véu estelar do seu olhar.

Quero o seu olhar completamente enfeitado
Onde namoram paisagens e flores se acasalam
Junto aos pássaros do amanhecer,
Em muita luz, brilho e um verde exuberante.

Porque o seu olhar vem da canção diurna,
Embora mudo, seu olhar canta a pulsação
Da melodia em notas magistrais,
Dó, ré, fá, sol, lá, si...

Quero o seu olhar derramando vestigios
Espalhando a dança dos pirilampos
Num chão de folhas frescas e perfumadas,
Onde o sol desmaia tênues fios.

Esse seu olhar de bicho na escuridão das matas
Divisando mistérios, acendendo clareiras,
Olhar de fogo, ardor, olhar de brisa e amanhecer
Um olhar ocre, cheio de milagres.

Quero o seu olhar abrindo as cortinas
Do grande palco da vida.
Quero-o com novo figurino, bons atores,
Quero um filtro delicado para o licor do seu olhar.
EU QUERO!
 
 
 
......................
Poema de Lúcia Helena Pereira; enviado pela própria poeta.
 
 
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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Trompas uterinas/ braços do mundo

ouço o recomeço acostumada seara
de grãos rompidos

ainda. as grandes mãos do mundo
fixam sementes, algarismos

palavras cervicais
húmus sobre terra húmida,

é esse o caminho que atinge ovários
pela boca da labareda.



......................
TALA, João. Forno Feminino. Luanda: Kilombelombe, 2009. p. 27

domingo, 10 de outubro de 2010

Poema em carne viva

O homem que me modela
essas horas indeléveis
tem vitras em vez de olhos.

Permeando a luz de si
em torrentes multicores,
seu olhar é o que me chama.

Retiro-me em suas ilhas,
sedenta do sal, da água,
da lágrima mais secreta.

E o homem que se descobre
a si mesmo, aos olhos meus,
tem a dor que me consome.



.....................
SIBELLI, Kalliane. Exercício de silêncio. Mossoró: Queima-Bucha, 2006.


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sábado, 9 de outubro de 2010

Mar novo

1

E a embarcação aparecia como um barco de recreio. 
Do pescador a musculatura dolorosamente suada 
merecia uma simples pincelada 
de silhueta negra 
impressionismo fácil 
afirmação exótica de que o dongo 
não andava sozinho. 

2

Mas é novo este azul    tela rasgada 
é novo o nosso olhar. 
É nova esta forma gestual de espuma 
feita sabor de amor de guerra e de vitória 
em nossas bocas férteis em nossa pálpebras 
de antigo medo clandestino 
soletrando a lágrima 
quando era o nosso mar recordação também 
escravizada: 
caminho secular de ir e não vir.

3

É nova esta areia 
este marulhar de fogo nos ouvidos 
quase notícia do rebentamento maior 
sobre o inimigo. 
É novo este calor como se o sol 
fosse um ananás coletivo suculento 
rasgado pelos dedos da madrugada mais quente 
e mais suave.

4

E é bom medir a água evaporada 
sobre a concha 
a alga 
a rocha. 
Medir também teu corpo natural 
onde encontrar a boca 
os pés 
os olhos 
a palavra.

5

E é bom verificar as mãos. Principalmente 
as nossas mãos umedecidas pelo mar. 
As mãos que tocam as coisas 
As mãos que fazem as coisas 
As mãos. As mãos terminal de carga 
e de descarga do nosso pensamento 
As mãos mergulhadas sob a água. 
na (re)descoberta tímida das essências 
no pulsar submarino de uma nova esperança. 

6

Tudo é fugaz 
entre o desenho do teu pé na areia 
e a onda que desfaz 
a marca 

Entre a guerra e a paz 
retorno fisicamente o poema      a onda 
constante meditação primeira. 

Nós e as coisas.

Nada permanece que não seja 
para a necessária mudança. 
 Que o diga o mar.

 

........................
Do livro Cinco vezes onze - poemas em novembro




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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Dois poemas de Dora Ferreira da Silva




Maduro para o canto

Maduro para o canto
vertes, cântaro,
a água pura
e suas sete cores
unindo lago e lago.
Barco em flor
rio correndo da prece
promessa em silêncio
da messe.

Sem pressa
o agapanto floresce.



Valsas de esquina de Mignone

Só um pássaro
e seu peso de orvalho tocando
o chão como se foram teclas.
Passa onde a graça
ilumina a cidade de ferro
subitamente atenta a essa beleza.

Nos jardins teimam rosas
delicadamente.
Violetas africanas
salpicam de ouro
muros escuros
e as princesas purpúreas
espiam dos balcões verdes
nas paredes florescidas:
dançam pétalas
dança a vida
nos jardins contentes
não termina a partitura
que se repete
sempre.


quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Dois poemas de R. Roldan-Roldan



Virgens de alabastro sob o luar
sombreadas por salgueiros
semeando espasmos azulados
nas clareiras de marfim
onde vagam pelas trilhas da noite
as notas sem som do realejo
que acalentam devaneios
deslizando-os sobre a brisa até o buxal
onde o falo solitário
túrgido de espera
uivando a tristeza da companheira abrumada
pulsa
ermo
pleno
o sangue pingando nos pergaminhos da alma
murmúrios de paixão exigindo seu resgate
nos brancos da carne
nos interstícios da morte
clarões intermitentes
rubras lufadas
no silente argento


*

Sou grito
emerjo
urjo ser
rebelo-me logo existo
imobiliza-me a rapidez
imenso
mutilado nos limites do não liberto
ouço os ciclos da verdade
morrendo e renascendo dos modismos
fluxos até
a ignominia da massificação
rima dignidade com demência?
demência com inocência?
submerjo-me em não-importância
dreno o sentimento apago vasculho o silêncio
coro a cor cortando o odor da minha pele
reduzindo a essência
o nada do universo
dissipo-me
humilde
ínfimo
feto



* De Os úberes do infinito

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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Dois poemas de Jorge Fernandes




REDE
 
Emboladora do sono...
Balanço dos alpendres e dos ranchos...
Vai e vem nas modinhas langorosas...
Vai e vem de embalos e canções...
Professora de violões...
Tipoia dos amores clandestinos...
Grande...  larga e forte...  pra casais...
Berço de grande raça.


Guardadora de sonhos
Pra madona ao meio-dia
Grande... côncava...
Lá no fundo dorme um bichinho...
—  Balança o punho da rede pro menino dormir.


MODERNO

Tomou o martelo pesado todo cheio de barro
E tocou a destruir todo verso bem feito...
Malhou nas ogivas dos decassílabos: — tá! tá! tá!...
E os pedaços de cornijas caíam pelo chão relvoso
Numa monotonia de pedaços de cornijas...
Fez cair todas as flores-de-lis que corneavam as janelas
E sobre o montão novo de ruínas de versos sonoros
Começou a viçar toda a vegetação alegre da terra:
Pés de jurubebas, canapuns, pinhões se erguiam...
As flores que ainda não foram vistas: azuis — amarelas — vermelhas — pintadas.
As folhas viçosas dos mata-pasto...
Lagartixas... Calangos num sim-sim de cabeça se estiravam
Ao sol gostosamente quente...
Melões de São Caetano enfeitavam todo o basculho
Da arquitetura colonial...


Jorge Fernandes nasceu a 22 de agosto de 1887, em Natal. Publicou em vários jornais de sua cidade como O potiguar, O tempo, A rua, Pax. Escreveu pequenas peças de teatro e alguns contos. Mas se destacou como poeta. Parte de sua obra poética foi publicada no único livro que viu em vida, Livro de poemas (1927), editado então com depoimento de Luiz da Câmara Cascudo. Morreu no dia 17 de julho de 1953.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Três poemas de Murilo Mendes


POEMA VISTO POR FORA

O espírito da poesia me arrebata
Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel
Num silêncio de antes da criação das coisas.
Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna:
O esterco novo da volúpia aquece a terra,
Os peixes sobem dos porões do oceano,
As massas precipitam-se na praça pública.
Bordéis e igrejas, maternidades e cemitérios
Levantam-se no ar para o bem e para o mal.

Os diversos personagens que encerrei
Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade
Que eu presido ora triste ora alegre.

Não sou Deus porque parto para Ele,
Sou um deus porque partem para mim.
Somos todos deuses porque partimos para um fim único.


GUERNICA

Subsiste, Guernica, o exemplo macho,
Subsiste para sempre a honra castiça,
A jovem e antiga tradição do carvalho
Que descerra o pálio de diamante.

A força do teu coração desencadeado
Contactou os subterrâneos de Espanha.
E o mundo da lucidez a recebeu:
O ar voa incorporando-se teu nome.


MAPA

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações…
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”…
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito…
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.


Murilo Mendes nasceu a 13 de maio de 1901 em Juiz de Fora. É considerado pela crítica um dos nomes mais significativos da literatura surrealista no Brasil. Sua vasta obra cobre prosa e poesia, este último gênero no qual ficou reconhecido. Seu primeiro livro Poemas data de 1930. Depois vieram títulos como A poesia em pânico (1937), As metamorfoses (1944), Mundo enigma (1945), Poesia liberdade (1947), Siciliana (1959), Tempo espanhol (1959), Poliedro (1972), entre outros. Morreu a 13 de agosto de 1975 em Lisboa. 

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Dois poemas de "Raiz de orvalho", de Mia Couto




Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço



Raiz de Orvalho


Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno


Mia Couto nasceu em Moçambique em 1955. Formado em Biologia, exerceu várias profissões, além da sua área de formação, como a de jornalista e a de professor. É autor de vasta obra que transita entre a prosa e a poesia e com a qual já recebeu alguns importantes prêmios como o Camões (2013). Em poesia publicou Raiz de orvalho,  Tradutor de chuvasIdades, cidades, divindades e Vagas e lumes.

Ode escrita em 1966



Ninguém é a pátria. Nem mesmo o ginete
que, alto na aurora de uma praça deserta,
leva um corcel de bronze tempo afora,
nem os outros que do mármore olham.
Nem os que sua bélica cinza espalharam
pelos campos da América
ou deixaram um verso ou uma façanha
no justo exercício dos dias.
Ninguém é a pátria. Nem mesmo os símbolos.

Ninguém é a pátria. Nem mesmo o tempo
carregado de batalhas, espadas e êxodos
e da lenta povoação de regiões
limítrofes da aurora e do ocaso,
e de rostos que vão envelhecendo
nos espelhos que se embaçam
e de sofridas agonias anônimas
que duram até a aurora
e da teia da chuva
sobre negros jardins.

A pátria, amigos, é um ato perpétuo
como o perpétuo mundo. (Se o Eterno
espectador deixasse de sonhar-nos
um só instante, nos fulminaria,
branco e brusco relâmpago, Seu olvido.)
Ninguém é a pátria, mas todos devemos
Ser dignos do antigo juramento
que prestaram aqueles cavalheiros
de ser o que ignoravam, argentinos,
de ser o que seriam pelo fato
De haver jurado nesta velha casa.

Somos o futuro desses varões,
a justificativa daqueles mortos;
nosso dever é a gloriosa carga
que a nossa sombra legam essas sombras
que devemos salvar.

Ninguém é a pátria, mas todos o somos.
Arda em meu peito e no vosso, incessante,
Esse límpido fogo misterioso.


.........................
poema enviado pelo Jorge Elias por e-mail.

BORGES, Jorge. O outro, o mesmo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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sábado, 2 de outubro de 2010

Um poema de Vladimir Maiakovski



O poeta-operário

Grita-se ao poeta:
"Queria te ver numa fábrica!
O quê? versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem".
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os oradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos
que façam mover-se a mó!

(1918)

Vladimir Maiakovski nasceu a 19 de julho de 1893 na aldeia de Bagdádi, na Geórgia, então  parte do Império Russo. Passou a primeira infância na terra natal até quando veio a morte do pai e a miséria da família obriga a todos se irem para Moscou. Cedo ingressou nas frentes do movimento revolucionário — o que o levou à prisão algumas vezes. Com Burliuk, depois de ingressar na Escola de Belas Artes, construiu as bases do cubo-futurismo, angariando a presença de nomes como Khlébnikov, Kamiênsi, entre outros. Sua poética bebe, entretanto, da efervescência das vanguardas — do primitivismo eslavista, da linguagem transracional, do impressionismo e do simbolismo. Suicidou-se a 14 de abril de 1930 em Moscou. 


......................
MAIAKÓVSKI, V. Maiakóvski - vida e poesia. Tradução de Emilio C. Guerra e Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret. (coleção obra-prima de cada autor), 2006, p.97-98.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dois poemas de Thiago de Mello




Fio da vida
na tarde em que as coronárias oclusas, entristecidas, me pedem para cantar, julho de 1998.

Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.


A fruta aberta
Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962

Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com  tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

Thiago de Mello nasceu a 30 de março de 1926 em Barreirinha, Amazonas. Ainda na infância mudou-se com a família para Manaus, onde realizou seus primeiros estudos. Mais tarde, para o Rio de Janeiro e chega a ingressar na Faculdade de Medicina, mas nunca concluiu o curso. Passou, desde então, a se dedicar ao trabalho com a literatura; sua estreia acontece com o volume de poemas Coração da terra, em 1947. Pelo trabalho em veículos de oposição à ditadura de Getúlio Vargas, foi perseguido, preso e obrigado ao exílio; regressou ao Chile, onde havia trabalhado como adido cultural, e viveu neste país por mais de uma década. No retorno ao Brasil, volta a viver em Barreirinhas. Sua obra se desenvolve em contínuo diálogo com seu tempo, interessada pela renovação do homem em sua reintegração com a natureza, este último, um interesse feito exercício pelo próprio poeta que na terra de origem passa ao convívio e ao trabalho de luta com as comunidades ribeirinhas na região amazônica. É dele livros como Silêncio e palavra (1951), Narciso cego (1952), A lenda da rosa (1956), Faz escuro mas eu canto (1966 e sua Magnum Opus), Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975), Os estatutos do homem (1964, seu poema mais popular), Vento geral (1981), Horóscopo para os que estão vivos (1984), Mormaço na floresta (1984), Num campo de margaridas (1986), dentre outros. Também escreveu prosa (crítica e ensaio) e traduziu obras de nomes como T. S. Eliot, Pablo Neruda (com quem convive no Chile), Ernesto Cardenal, Cesar Vallejo, Eliseo Diego, entre outros. Thiago de Mello morreu no dia 14 de janeiro de 2022.