sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Dois poemas de Adélia Prado




CASAMENTO


Há mulheres que dizem
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.



PRA COMER DEPOIS 

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
As pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
‘Eh bobagem!’
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
Quando for impossível detectar o domingo
Pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
Em meu país de memória e sentimento,
Basta fechar os olhos:
É domingo, é domingo, é domingo.


Adélia Prado nasceu a 13 de dezembro de 1935 em Divinópolis, Minas Gerais. Da sua obra, que inclui prosa e poesia, destaca-se esse último gênero, do qual publicou títulos como Bagagem (1975), Terra de Santa Cruz (1981), A faca no peito (1968), Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010).