domingo, 17 de outubro de 2010

Canto primeiro - Preparação da viagem

Nem armas, nem barões, nem caravelas,
nem ilustres varões de grande fama,
nem feitos valorosos, nem aquelas
viagens de Cabrais, Vascos da Gama,
trarei para este poema, nem as velas
de antifas naus de gente lusitana,
por isso foi cantado em toda a parte,
por voz que surpreendeu de engenho e arte.

Não cantarei saudades reprimidas,
nem amores de Inês, posta em sossego;
não falarei das ninfas escondidas
nas lágrimas das fontes, no Mondego,
nem lembrarei batalhas esquecidas
nos longes de algum tempo antigo e cego:
direi de coisas várias neste poema,
que a vida coisas várias tem por tema.

Direi coisas perdidas na memória
das águas agitadas da existência,
tempo passado, estrada provisória,
que encontro em permanente confluência
na vida sempre tão contraditória,
nos dias que se vão, deixando ausências.
Direi palavras velhas sempre novas,
guardadas entre as cinzas de outras horas.

Direi coisas antigas: sonhos, viagens,
infâncias soterradas, velas, mastros,
continentes perdidos e visagens
de gigantes de pedra, estrelas, astros,
rotas, roteiros, quilhas, marinhagens,,
águas-marinhas verdes como pastos.
Também de coisas vãs direi aqui,
que muitas coisas vãs no mundo vi.


Redescobrindo os mares do passado,
à guerra neste poema me aventuro
nos ares nunca de antes navegados,
reconquistando reinos, mundo escuro
das lembranças de tempos sepultados
sob o peso dos dias, meses, anos
alegrias, tristezas, desenganos.

Mas na guerra que travo não há lutas
de gregos por Helenas raptadas,
nem cavalos de pau vindos das grutas
para invadir as Tróias sitiadas,
Outras batalhas são, contendas muitas,
e só palavras, armas empregadas...
Por isso nesta guerra esqueço Marte
e chamo Orfeu, qu aqui se trata de arte.

Para me acompanhar nesta jornada,
convoco Orfeu mais outras companhias:
Enéias que vitórias sempre via,
Ulisses, odisséias terminadas
e Beatriz mostrando a travessia
da selva escura às ilhas do mar largo,
Camões, Virgílio, Homero, ó Dante magno!

Ao tempo e ao mar entrego este poema,
memórias das palavras, mundo, infância,
possível solução deste teorema
que a vida nos impôs na circunstância
de nos trazer de volta ao mesmo tema:
lembranças de passados e distâncias
refeitas por batéis, ébrios enganos,
que nas águas do sonho navegamos.

Antigos labirintos desvendados
pelo fio do destino que nos deu
o acaso, a vida, o mundo, os nossos fados
e o teu futuro envolto em véus
que recobrem meus olhos fatigados
de navegar no mar que vai nos teus.
Seguindo os astros, ventos e caminhos,
te acompanhando sempre, vou sozinho.

E sobre as verdes ondas já me encontro,
içando as largas velas da poesia
ao vento marinheiro, ao grande sopro,
que espelha o cheiro forte a maresia,
iniciando a viagem, ou desencontro,
que ninguém sabe o que há na travessia
do oceano do tempo aprisionado
nas sombras das memórias sem passado.



...................
PAIVA, José Rodrigues de. Memórias do Navegante. 2 ed. Recife: Edições Dédalo, 2000, p. 21-26.



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