sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Três poemas de Pablo Neruda




EU NÃO ME CALO

Perdoe o cidadão esperançado
minha lembrança de ações miseráveis,
que levantam os homens do passado.

Eu não preconizo um amor inexorável.

E não me importa pessoa nem cão:
só o povo me é considerável:
só a pátria me condiciona.

Povo e pátria manejam meu cuidado:
Pátria e Povo destinam meus deveres
e se logram matar o revoltado
pelo povo, é minha Pátria quem morre.

É esse meu temor e minha agonia.

Por isso no combate ninguém espere
que fique sem voz minha poesia.


A AFOGADA DO CÉU

Tecia mariposa, vestimenta
pendente das árvores,
afogada no céu e à deriva
entre fissuras e chuvas, só, só, compacta,
com roupa e cabeleira feito bandeiras
e centros corroídos pelo ar.
Imóvel, resistes
à romba agulha do inverno,
rio de água irada que te acomete. Celeste
sombra, ramo de pombas
roto de noite entre as flores mortas:
detenho-me e sofro
quando como um som lento e repleto deste frio
propagas o teu arrebol golpeado pela água.


JUVENTUDE

Um perfume como uma ácida espada
de cerejas num caminho,
os beijos do açúcar nos dentes,
as gotas vitais resvalando nos dedos,
a doce polpa erótica,
as eiras, os paióis, os incitantes
lugares secretos das casas amplas,
os colchões dormidos no passado, o acre vale verde
olhado de cima, da vidraça escondida:
toda a adolescência molhando-se e ardendo
como uma lâmpada derrubada na chuva.

Pablo Neruda nasceu a 12 de julho de 1904 em Parral. Estudou Pedagogia e Francês na Universidade do Chile, período quando começa a se apresentar como escritor: data de então o terceiro lugar num concurso do jornal A Manhã, o primeiro lugar na Festa da Primavera e as primeiras publicações — Crepusculário sai em 1923. É quando se interessa também pelas vanguardas, influência que se reparará em três plaquetes publicadas na década seguinte: O habitante e sua esperança, Anéis e Tentativa do homem infinito. Torna-se diplomata e estabelece relações com nomes da literatura ao redor do mundo: Federico García Lorca, Rafael Alberti, Vinicius de Moraes, entre outros. Dos livros que publicou, destaca-se Nasci para nascer. Em 1971, torna-se o segundo poeta do seu país a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em Santiago a 23 de setembro de 1973.