quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Três poemas de Miguel Torga


ORFEU REBELDE

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso    
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;    
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...    
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas    
Do moinho cruel que me tritura,    
Saibam que há gritos como há nortadas,    
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte    
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa    
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa    
Se o canto é de terror ou de beleza.


ÍCARO

O alcatraz atira-se do alto.
Dobra as asas, e cai.
Do céu à terra é um salto.
Do céu ao mar, um gesto.
Longe, fica o protesto
Que não sobe aonde vai.


O NARCISO

O desenho impreciso
De cada rosto humano, reflectido!
Mas o velho Narciso
Continua fiel e debruçado
Sobre o ribeiro...
Porque não há-de ver-se inteiro
Quem todo se deseja revelado?
Devorador da vida lhe chamaram,
 A ele, artista, sábio e pensador,
Que denodadamente se procura!

A movediça e trágica tortura
De velar dia e noite a líquida corrente
Que dilui a verdade,
Quiseram-lhe juntar a permanente
Ironia
Desse labéu de pérfida maldade

Que turva mais ainda a imagem fugidia



Miguel Torga nasceu em São Martinho de Anta, a 12 de agosto de 1907 e morreu em Coimbra a 17 de janeiro de 1995. Destacou-se como contista e memorialista, mas sua vasta obra se espraia entre várias formas, no romance, no teatro e no ensaio.  Sua poesia está publicada em mais de uma dezena de títulos; começou com Ansiedade, em 1928, e passou por Abismo (1931), O outro livro de Job (1943), Odes (1946), Cântico do homem (1950) e Câmara ardente, o último título no gênero. A partir de 1997 começou a se organizar sua poesia completa. Miguel Torga recebeu importantes galardões, como o Prêmio Camões.