segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Dois poemas de Irene Lisboa



DESASSOSSEGO

Levanto os olhos.
Tinha-os sobre uma chapinha circunflexa, uma
espécie de oito luminoso, fixos no chão.
Olhos circunvagantes, um momento parados.

Tanta inquietação!
Rodopiante, como as moscas gulosas, teimosas,
insaciáveis.
Coração indefeso...

Agora o sol é já um sapatinho.
Uma meiazinha de criança, minúscula.

Mas de si que deixará esta minaz luta, este desassossego?
Cansaço e severidade.

Agora é uma moeda redondinha.
Cada vez mais pequena.
Luz e forma sempre nova...
Agora é só uma dedada, some-se.
Agora mais nada.
Igualdade.


O BELO VERSO

Apetecia-me escrever um belo verso.
Sonoro, elegante, correcto, de mármore!
Nele por o que outros me inspirassem.
O que ali aquele poeta estava cantando.
Ele o cantava e eu o repetia.
Acrescentava, desdobrava, acrescia da minha ansiedade.
Mas verso bem feito!
Cheio do que se sonha, não do que se sente.
Parece-me pobre o que sinto.
E vulgar.
Estes olhos que sem querer se envidraçam, fúteis,
sem recato, infantis, esta voz insegura, enfim,
tudo isto...
Que figura iriam fazer dentro de um verso elegante, lapidar?
Belo verso trair-te-iam, roubar-te-iam toda a graça
e até a ressonância, o êxtase e aquela espécie de
embalo que ao espírito sempre dás.

Mas sinceramente me apetecia escrever um verso
de mármore, belo!
Tudo, tudo por causa daquele poema...
Daquela exaltação do desejo, daquele arrebatamento lírico, infixo, daquela sensualidade espumosa...
Meu velhíssimo verso falhado, meu, não o dos outros...
Com que te haveria eu de ilustrar?
Com que te encher, meu divino, lúcilo, aéreo,
palavroso poema do nada?

Irene Lisboa nasceu na Quinta da Murzinheira em Arruda dos Vinhos no dia 25 de dezembro de 1892. Foi uma poeta, contista e pedagoga. Fez seus estudos na Escola Normal Primária de Lisboa, em Ciências da Educação na Suíça, França e Bélgica. Estreou na literatura em 1926 com um livro de contos para crianças, Treze contarelos; na poesia, o primeiro a publicar foi Um dia e outro dia... Diário de uma Mulher (1936), publicado sob o pseudônimo de João Falco; com o mesmo pseudônimo publicou ainda Outono havias de vir (1937) e Solidão. Notas do punho de uma mulher (1939). Irene Lisboa morreu em Lisboa no dia 25 de novembro de 1958.





segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Três poemas de Emily Dickinson



249

Noites Loucas — Noites Loucas!
Estivesse eu contigo
Noites Loucas seriam
Nosso luxuoso abrigo!

Para Coração em porto —
Ventos — são coisas fúteis 
Bússolas — dispensáveis 
Portulanos — inúteis!

Navegando em pleno Éden —
Ah, o Mar!
Quem dera — esta Noite — em Ti
Ancorar!


258

Às vezes, em Tardes de Inverno, 
Uma Luz Enviesada — 
Como o Som das Catedrais 
Opressora, Pesada — 

Nos fere com Dor Divina — 
Porém cicatriz não fica 
Senão no fundo de nós, 
Onde o Sentido habita — 

É o Selo do Desespero — 
A ele — Nada lhe Falta — 
Angústia imperial 
Que nos desce do alto 

Quando vem, a Terra atenta — 
Sombras — param no ar — 
Quando vai, é como a Morte 
Ao Longe, a se afastar —


870

Primeiro Ato é achar,
Perder é o segundo Ato,
Terceiro, a Viagem em busca
Do “Velocino Dourado”.

Quarto, não há Descoberta —
Quinta, nem Tripulação —
Por fim, não há Velocino —
Falso — também — Jasão.

Emily Dickinson nasceu a 10 de dezembro de 1830, em Amherst. De vida reclusa, trabalhou continuamente na construção de uma poesia que só se descobriu em sua grande dimensão depois da sua morte; em vida, poucos textos foram publicados sem alcançar reconhecimento.  Sua obra tem sido organizada em cartas, textos esparsos e poemas; neste gênero somam-se mais de mil textos. A poeta estadunidense morreu no dia 15 de maio de 1886.

* Traduções de Paulo Henriques Britto.


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Novidades no espaço do Caderno-revista 7faces

Foi inaugurado na web a página do caderno-revista 7faces no Facebook. A proposta é um marco na segunda fase do projeto inicial. Tem por função a descentralização das atividades do periódico em relação às atividades do Blog Letras in.verso e re.verso - sua matriz original.

A página será um espaço que deixará os leitores por dentro de todas essas atividades divulgadas no blog e não somente isso, deverá ser uma rede pública para que autores e leitores confabulem suas ideias, suas obras. Um espaço na web aberto à poesia e às artes plásticas, foco do caderno-revista.

E já agora não deixem de nos seguir.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Cinco sonetos de Walter Benjamin



TIRA-ME AO TEMPO A QUE ESCAPASTE BRUSCO

Tira-me ao tempo a que escapaste brusco
Dá-me de dentro o que teu perto estende
Como a rosa vermelha ao lusco-fusco
Da frouxa ordem das cousas se desprende

Vera afeição e amarga voz ausência
Que sinto calmo e do rubro da boca
Crestada pela rubra incandescência
Com que o cabelo em sombra púrpura toca

A fronte aflita. E a imagem far-me-á falta
De cólera e louvor que me oferecias
No pisar nobre em que levavas a alta

Bandeira cujo signo me anuncias
Só porque em mim pões teu nome bendito
Sem imagens qual Amém aflito


COMO O CORAL ALASTRA A SUA MORTE

Como o coral alastra a sua morte
A arder em árvore púrpura no seio
Do mar com a temente alma no seio
Dos braços rubros presa do mais forte

Com beijo amargo de ruína veio
A ameaça. Ela faz voto de sorte
Que acre tormento a tal mando suporte
E é-lhe paga final receio

Medida no festim desesperado
Na turvação lembra a doçura amena
Bebe o Lethes do tempo perturbado

Qual dando eternidade em mão serena
Dota a alma e a herança distribui
O ser simples de quem recusa flui.


COMO É QUE A SOLIDÃO HEI-DE IR MEDINDO?

Como é que a solidão hei-de ir medindo?
Desse-me os golpes de uso inda esta dor
Um a um sua nudez a sobrepor
Que o ritmo sem nome a foi vestindo

Mas sofro agora o tempo nu saindo
Numa levada sem nenhum teor
Gasto caudal do meu rio interior
Nem chora o peito por mais gritos vindo

Quando é que é novo ano na amargura
Quando volto a chegar-me à desventura
Que me faz falta em ocos dias vis.

Ah quando é que arde escura em cores febris
À testa do ano como a vi na altura
Do agosto em chamas funda cicatriz?


HÁ EM TODA BELEZA UMA AMARGURA

Há em toda a beleza uma amargura
secreta e confundida que é latente
ambígua indecifrável duplamente
oculta a si e a quem na olhar obscura

Não fica igual aos vivos no que dura
e a não pode entender qualquer vivente
qual no cabelo orvalho ou brisa rente
quanto mais perto mais se desfigura

Ficando como Helena à luz do ocaso
a língua dos dois reinos nâo lhe é azo
senão de apartar tranças ofuscante

Mas à tua beleza não foi dado
qual morte a abrir teu juvenil estado
crescer e nomear-se em cada instante?


VIBRA O PASSADO EM TUDO O QUE PALPITA

Vibra o passado em tudo o que palpita
qual dança em coração de bailarino
ao regressar já mudo o violino
e há nuvens sobre o bosque em que transita

À paz dos seres a morte em seu contínuo
crescer em ramos de coral incita
a bem da noite negra e infinita
ser um raro instrumento é seu destino:

O cetro dos eleitos que não cansam 
o corpo que este tempo já não quebra
é como a cruz que os astros quando avançam

sobre o sul traçam por medida e regra
Os deuses têm-no em suas mãos cativo
risível é quem eles mandam vivo. 

Walter Benjamin nasceu em Berlim a 15 de julho de 1892. O reconhecido ensaísta, crítico literário, filósofo e sociólogo também se aventurou no ofício literário, do qual resultou obras como os sonetos aqui apresentados. Morreu a 27 de setembro de 1940, em Portbou, na Espanha. 


* Traduções de Vasco Graça Moura