Frutos
A bondade da mangueira
não é o fruto.
É a sombra.
A térrea,
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.
Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.
Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.
A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.
O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore
A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.
Para o homem
vale a polpa.
Para a terra
só a semente conta.
Números
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro
Luas.
Para a tua boca, todas as
vidas.
Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.
Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.
Tristeza
A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.
A minha tristeza
é a do astrónomo cego.
O bairro da minha infância
Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço da água.
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Mia Couto
nasceu em Moçambique em 1955. Formado em Biologia, exerceu várias profissões,
além da sua área de formação, como a de jornalista e a de professor. É autor de
vasta obra que transita entre a prosa e a poesia e com a qual já recebeu alguns
importantes prêmios como o Camões (2013). Em poesia publicou Raiz de orvalho, Tradutor
de chuvas, Idades, cidades,
divindades e Vagas e lumes.