sábado, 8 de janeiro de 2011

Barca bela

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador!


Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!


............................
De Almeida Garret, do livro Folhas caídas. Publicado inicialmente na Revista Agulha.



Cinco poemas de Alberto da Cunha Melo


CASA VAZIA

Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.


FILHOS DO NORTE

Durante toda falsa infância,
caíam dos céus chuvas demais
na terra inteira e, agora, quando
deve chover, não chove mais;

meninos sujos, nessa rua,
brincávamos com a lama crua;

quando anoitecia de vez,
dentro do copo de café
molhávamos o pão francês;

lá fora um deus, por trás de um muro,
devorava nosso futuro.


ESTAÇÃO TERMINAL

O céu parece revestido
de uma camada de cimento:
deixo as marquises porque sei
que esta chuva não passará.

Se esperasse um tempo de paz,
nem meu túmulo construiria.
Começo e recomeço a casa
de papelão em pleno inverno.

Um plano, um programa de ação
debaixo de uma árvore em prantos,
e voltar à primeira página
branca e ferida pela pressa.

A poesia já não seduz
a quem mais forte ultrapassou-a,
libertando um pouco de vida
e luz, da corrente de estrelas.

Toda renúncia nos convida
a recomeçar outra busca,
porque algo a inocência perdeu
no chão, para arrastar-se assim.


CONDENSAR/CONCERTAR

A vida aqui fala bem claro,
mas sem a eloquência da lágrima;
como a renda, como a poesia,
é uma linguagem concentrada;

é cloro na água da piscina
da cobertura, lá em cima,

onde Clara, uma pós-donzela,
posa nua para o helicóptero
que faz evoluções sobre ela;

e a luz do sol, como toalha,
só existe para enxugá-la.


RELÓGIO DE PONTO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.



De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.