quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Um dos poemas mais marcantes de Almada Negreiros





A CENA DO ÓDIO



A Álvaro de Campos

a dedicação intensa
de todos os meus avatares

Ergo-Me Pederasta apupado d' imbecis,
divinizo-me Meretriz, ex-líbris do Pecado.
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a  arder o Meu cantar!
Sou Vermelho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!
Sou Génio de Zaratrustra em Taças de Maré-Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!
Ladram-Me a Vida por vivê-la
e só Me deram Uma!
Hão-de lati-La por sina!
Agora quero vivê-La!
Hei-de poeta cantá-La em Gala sonora e dina!
Hei-de Glória desanuviá-la!
Hei-de Guindaste içá-la esfinge
da Vala pedestre onde Me querem rir!
Hei-de trovão-clarim leva-La Luz
às Almas-Noites do jardim das Lágrimas!
Hei-de bombo rufá-la pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido…,
hei-de Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Átila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou Narciso do Meu Ódio!
— O Meu Ódio é  Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos de Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu Ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé: só Dilúvio Universal,
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...,
até apagar o Sol!

Sou trono de Abandono, mal-fadado.
nas iras dos bárbaros, meus Avós.
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina
gemidos vencidos de fracos,
ruídos famintos de saque,
ais distantes do Maldição eterna em Voz antiga!
Sou ruínas rasas, inocentes
Como as asas de rapinas afogadas.
Sou relíquias de mártires impotentes
sequestradas em antros do Vício.
Sou clausura de Santa professa,
Mãe exilada do Mal,
Hóstia d'Angústia no Claustro,
freira demente e donzela,
virtude sozinha da tela
em penitência do sexo!
Sou rasto espezinhado d'Invasores
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.
Sou a Raiva atávica dos Távoras
o sangue bastardo de Nero,
o ódio do último instante
do condenado inocente!
A podenga do Limbo mordeu raivosa
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
E a Alma dos Bórgías a penar!

Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
pra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu qu'inventaste as Ciências e as Filosofias.
as Políticas, as Artes e as Leis.
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo...
Tu, que aperfeiçoas a arte de matar...
Tu que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho-Marítimo da Índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas terras
e que trouxeste de lá  mais Chatos pr’aqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'índa foste inventar submarinos
pra te chateares também por debaixo d' água...
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres...
Tu consegues ser cada vez  mais besta
e a este progresso chamas Civilização!

Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
Vai inchando a tua ambição-toiro
'té que a barriga te rebente rã.
Serei Vitória um dia
— Hegemonia de Mim!
e tu nem derrota, nem morto, nem nada.
Século-dos-Séculos virá um dia
e a burguesia será escravatura
se for capaz de sair de cavalgadura!
Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Hei-de morder-te a ponta do rabo
e pôr-te as mãos no chão, no seu lugar!
Aí! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!
Aí! Espelho-aleijão do Sentimento,
macaco-intruja do Alma-realejo
Aí! maquerelle da Ignorância!
Silenceur do Génio-Tempestade!
Spleen da Indigestão!
Aí! Meia-tigela, travão das Ascensões!
Aí! Povo judeu dos Cristos mais que Cristo!
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno!
Ó ideal ricocó dos Mendes e Possidónios!
Ó cofre d'indigentes
cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do vulgar, protagonista do normal!
Ó catitismo das lindezas d'estalo!
Aí! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Aí! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d' impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Aí! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Ai! plebeísmo aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competência de relógio d’oiro
e corrente com suores do Brasil,
e berloques de cornos de búfalo!
E eu vivo aqui desterrado e Job
da Vida-gémea d' Eu ser feliz!
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-próprio,
órfão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
Se Deus, por escárnio, me deu inteligência,
e não tenho, sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
(Pesam quilos no Meu querer
as salas-de-espera de Mim.
Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã…
Agora vou esperar que morras.
Mas tu és tantos que não morres..,
Vou deixar d'esp'rar que morras
— Vou deixar d’esp’ar por mim!)
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a alma dos Bórgias a penar!
E tu, também, vieille-roche, castelo medieval
fechado por dentro das tuas ruínas!
Fiel epitáfio das crónicas aduladoras!
E tu também, ó sangue azul antigo
que já nasceste co'a biografia feita!
Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas!
O pergaminho amarelo-múmia
das grandes galas brancas das paradas
e das vitórias dos torneios-lotarias
com donzelas-glórias!
O resto de ceptros, fumo de cinzas!
Ó lavas frias do vulcão pirotécnico
com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!
Ó estilhaços heráldicos de vitrais
despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!
Ó cedro secular
debruçado no muro da Quinta sobre a estrada
a estorvar o caminho da Mala-posta!

E vós também, ó gentes de Pensamento,
ó Personalidades, ó Homens!
Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria.
Cristos vencidos por serem só Um!
E vós, ó Génios da Expressão,
e vós também, ó Génios sem Voz!
Ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,
espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!
Profetas clandestinos
do Naufrágio de Vossos Destinos!

E vós também, teóricos-irmãos-gémeos
do meu sentir internacional!
Ó escravos da Independência!
Vós que não tendes prémios
por se ter passado a vez de os ganhardes,
e famintos e covardes
entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio
na boémia da bomba e da  pólvora!

E tu também, ó Beleza Canalha
co'a sensibilidade manchada de vinho!
Ó  lírio bravo da Floresta-Ardida
à meia-porta da tua Miséria!
Ó fado da Má-Sina
com ilustrações a giz
e letra da Maldição!
Ó fera vadia das vielas açaimada na lei!
Ó  xale e lenço a resguardar a tísica!
Ó franzinas do fanico
co'a sífilis ao colo por essas esquinas!
Ó  nu d'aluguer
na meia-luz dos cortinados corridos!
Ó oratório da meretriz, a mendigar gorjetas
prà sua Senhora da Boa-Sorte!
Ó gentes tatuadas do calão!
Ó carro vendado da Penitenciária!

E tu também, ó Humilde ó Simples!
Enjaulados na vossa ignorância!
Ó pé descalço a calejar o cérebro!
Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!
Ó alguidar de açorda fria
na ceia-fadiga da dor-candeia!
Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos!
Ó carretas da Voz do Operário
com gente de preto a pé e filarmónica atrás!
Ó campas rasas engrinaldadas,
com chapões de ferro e balões de vidro!
Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!
Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!
Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!

Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!
Ó  pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!
Ó trouxa d'aba larga da minha lavadeira,
ó rodopio azul da saia azul de Loures!

E vós varinas que sabeis a sal
e que trazeis o Mar no vosso avental,
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!
E vós também, ó moças da Província
que trazeis o verde dos campos
no vermelho das latas pintadas!
E tu também, ó mau gosto
co’a a saia de baixo a ver-se
e a falta d'educação!
Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)
a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!
Ó  tédio do domingo com botas novas
e música n'Avenida!
Ó santa Virgindade
a garantir a falta de lindeza!
Ó bilhete postal ilustrado
com aparições de beijos ao lado!
E vós ó gentes que tendes patrões,
autómatos do dono a funcionar barato!
Ó criadas novas chegadas de fora pra todo o serviço!
Ó costureiras mirradas,
emaranhadas na vossa dor!
Ó  reles caixeiros, pederastas do balcão,
a quem o patrão exige modos lisonjeiros
e maneiras agradáveis prós fregueses!
Ó Arsenal-ladista de ganga azul e coco socialista!
Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia!
E vós também, ó toda a gente,
que todos tendes patrões!
E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Maquereaux da Pátria que vos pariu ingénuos
e vos amortalha infames!
E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
à opinião pública!
E tu também roberto fardado:
Futrica-te espantalho engalonado
apeia-te das patas de barro,
larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
Ralha-te mercenário asceta da Crueldade!
Espuma-te no chumbo da tua Valentia!
Agoniza-te Rilhafoles armado!
Desuniversidaliza-te da doutorança da chacina,
da ciência da matança!
Groom fardado da Negra.
pária da Velha!
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!
Despe-te da farda,
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu
que ficas desempregado!
Acouraça-te de senso,
vomita de vez o morticínio,
enche o pote de raciocínio,
aprende a ler corações,
que há muito mais que fazer
do que fazer revoluções!
Ruína com tuas próprias peças-colossos
as tuas próprias peças colossais,
que de 42 a 1 é meio-caminho andado!
Rebusca no seres selvagem,
no teu cofre do extermínio
o teu calibre máximo!
Põe ele parte a guilhotina,
dá férias ao garrote!
Não dês língua aos teus canhões,
nem ecos às pistolas,
nem vozes às espingardas!
— São coisas fora de moda!
Põe-te a fazer uma bomba
que seja uma bomba tamanha
que tenha dez raios da Terra.
Põe-lhe dentro a Europa inteira,
os dois pólos e as Américas,
a Palestina, a Grécia, o mapa
e, por favor, Portugal!
Acaba de vez com este planeta,
Faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta  gente distraída em guerras!)

Eu  creio na transmigração das almas
por isto de Eu viver aqui em Portugal.
Mas, eu não me lembro o mal que fiz
durante o Meu avatar de burguês.
Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam —
uma fornalha de nunca se morrer —,
mas sim um Jardim da Furopa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E. ainda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!

E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo.
meu desacreditado burguês apinocado
da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
co'a Felicidade em casa a servir aos dias!
Tu tens em teu favor a glória fácil
igual á de outros tantos teus pedaços
que andam desajuntados neste Mundo,
desde a invenção do mau cheiro,
a estorvar o asseio geral.
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio
que Deus perdeu de vista o Adão de Barro
e com pena fez, outro de bosta de boi
por lhe faltar o barro e a inspiração!
E enquanto este Adão dormia
os raios roeram-lhe os miolos
e das caganitas nasceu a Eva burguesa!

Tu arreganhas os dentes quando te falam d’Orpheu
e pões-te a rir, tomo os pretos, sem saber porquê.
E chamas-me doido a Mim que sei e sinto o que Eu escrevi!
Tu que dizes que não percebes;
rir-te-ás de não perceberes?

Olha Hugo! Olha Zola! Cervantes e Camões,
e outros que não são nada por te cantarem a ti!
Olha Nietzsche! Wilde! Olha Rimbaud e Dowson!
Cesário, Antero e outros tantos mundos!
Beethoven, Wagner e outros tantos génios
que não fizeram nada,
que deixaram este mundo tal qual!
Olha os grandes o que são estragados por ti!
O teu máximo é ser besta e ter bigodes.
A questão é estar instalado.
Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio,
a seres alguém,
o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera!
E de que serve o livro e a ciência
se a experiência da vida
é que faz compreender a ciência e o livro?
Antes não ter ciências!
Ames não ter livros!
Ames não ter Vida!

Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes,
quando te vejo apalermado plas esquinas
a dizeres piadas ás meninas,
e a gostares das mulheres que não prestam
e a fazer-lhes a corte
e a apalpar-lhes o rabo,
esse  tão cantado belo cu.
que creio ser melhor o teu ideal
que a própria mulher de cu grande!
E casaste-te com Ela,
porque o teu ideal veio pegado a Ela,
e agora à brocha limpas a calva em pinga
â coca de cunhas pró Cunha, examinador
do teu décimo nono filho
dezanove vezes parvo!
(É o caso mais exemplar de constância e fidelidade
a tua história sexual co'a Felisberta.
desde o teu primogénito tanso
'té ao décimo nono idiota.)
'té no matrimónio te maldigo, infame cobridor!
Espécie de verme das lamas dos pântanos
que, de tanto se encharcar em gozos,
o seu corpo se atrofiou
e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo!

Em toda a parte tu és o admirador
e em toda a parte a tua ignorância
tem a cumplicidade da incompetência
dos que te falam 'té dos lugares sagrados.
Sim! Eu sei que tu és juiz
e qu'inda ontem prometeste à tua amante,
despedindo-a num beijo de impotente,
a condenação dos réus que tivesses
se Ela faltasse â matinée da Boa-Hora!
Pulha! E és tu que do púlpito
dessa barriga d’Água da Curia
dás a ensinança de trote
aos teus dezanove filhos?!
Cocheiros, contai: dezanove!!!
Zut! bruto-parvo-nada
que Me roubaste tudo
'té Me roubaste a Vida
nem Me deixaste a Morte!
Zut! poeira-pingo-micróbio
que gemes pequeníssimos gemidos gigantes,
grávido de uma dor profeta colossal!
Zut! elefante-berloque parasita do não presta!
Zut! bugiganga-celulóide-bagatela!
Zut! besta!
Zut! bácoro!!
Zut! merda!!!

Em toda a parte o teu papel é admirar,
mas (caso inf’liz)
nunca acertas numa admiração feliz.
Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim
e se por desgraça vem um dia sem jornais.
tens de ficar em casa nos chinelos
porque nesse dia, felizmente,
não tens opinião pra levares à rua.
Mas nos outros dias lá estás a discutir,
É que a Natureza é compensadora:
quem não tem dinheiro pra ir ao Coliseu
deve ter cá fora razões pra se rir.
Só te oiço dizeres dos outros
a inveja de seres como eles.
Nem ao menos, pobre fadista,
a veleidade de seres mais bruto?
Até os tens desejos são avaros
como as tuas unhas sujas e ratadas.
Ó  meu gordo pelintrão,
água-morna suja, broa do outro v'rão!
Os homens são na proporção dos seus desejos
e é por isso que eu tenho a concepção do Infinito…
Não te cora ser grande o teu avô
e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma?
Não te dói Adão mais que tu?
Não te envergonha o teres antes de ti
outros muito maiores que tu
Jamais eu quereria vir a ser um dia
o que o maior de todos já o tivesse sido.
Eu quero sempre muito mais
e mais ainda muito pr'além-demais-Infinito...
Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?

Em toda a parte o bicho se propaga,
em toda a parte o nada tem estalagem.
O meu suplício não é somente de seres meu patrício
ou o de ver-te meu semelhante:
tu, mesmo estrangeiro, és besta bastante.
Foi assim que te encontrei na Rússia
como vegetas aqui e por toda a parte,
e em todos os ofícios
e em todas as idades.
Lá suportei-te muito! Lá falavas russo
e eu só sabia o francês.
Mas na França, em Paris — a Grande capital,
apesar de fortificada,
foi assolada por esta espécie animal.
E andam plos cafés como as pessoas
e vestem-se na moda como elas,
e de tal maneira domésticos
que até vão às mulheres
e até vão aos domésticos.
Felizmente que na minha pátria.
a minha verdadeira mãe, a minha santa Irlanda,
apenas vivi uns anos d'infância
apenas me acodem longinquamente
as testas ensuoradas do priest da minha aldeia.
apenas ressuscitam sumidamente
as asfixias da tísica-mater,
apenas soam como revoltas
as pistolas do suicídio de meu pai,
apenas sinto infantilmente
no leito de uma morta
o gelo de umas unhas verdes,
um frio que não é do Norte,
um beijo grande como a vida de um tísico a morrer.
Ó Deus! Tu que que mos levaste é que sabias
o Ódio que eu lhes teria
se não tivessem ficado por ali!
Mas antes, mil vezes antes,
aturar os burgueses da My Ireland
que estes desta Terra
que parece a pátria deles!
Ó Horror! os burgueses de Portugal
têm de pior que os outros
0 serem portugueses!

A Terra vive desde que um dia
deixou de ser bola do ar
pra ser solar de burgueses.
Houve homens de talento, génios e imperadores.
Precisaram-se de ditadores,
que foram sempre os maiores.
Cansou-se o mundo a estudar
e os sábios morreram velhos
fartos de procurar remédios,
e nunca acharam o remédio de parar.
E'inda hoje eu vivo no século XX
a ver desfilar burgueses
trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano,
e a saber que um dia
são vinte e quatro horas de chatice
e cada hora sessenta minutos de tédio
e cada minuto sessenta segundos de spleen!
Ora bolas para os sábios e pensadores!
Ora bolas pra todas as épocas e todas as idades!
Bolas prós homens ele todos os tempos,
e prà intrujice da Civilização e da Cultura!
Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tem olhos de ver!
Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual
e a f’ licidade de um jantar cedinho
co'as bestas da família.
Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais!
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!
Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada
pra os poder admirar como tu!
Eu queria que a Vida fosse tão divinal
como tu a supões, como tu a vives!
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça
a boiar à tona d’água, à mercê dos ventos,
sem nunca saber que fundo que é o Mar!

Olha para ti!
Se te não vês, concentra-te, procura-te!
Encontrarás primeiro o alfinete
que espetaste na dobra do casaco,
e depois não percas o sítio,
porque estás decerto ao pé do alfinete.
Espeta-te nele pra não te perderes de novo,
e agora observa-te!
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!
Não te odeies ainda qu' inda agora começaste!
Enjoa-te no teu nojo, mastodonte!
Indigesta-te na palha dessa tua civilização!
Desbesunta-te dessa vermência!
Destapa a tua decência, o teu imoral pudor!
Albarda-te em senso! estriba-te em Ser!
Limpa-te do cancro amarelo e podre
do lazareto de seres burro!
Desatrela-te do cérebro-carroça!
Desata o nó cego da vista!
Desilustra-te, descultiva- te, despole-te,
que mais vale ser animal que besta!
Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da civilização
Queria-te antes antropófago porque comias os teus
— talvez o mundo fosse Mundo
e não a retrete que é!
Aí! excremento do Mal, avergonha-te
no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio:
Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes
e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião!
E tu, se não fossem os teus pais,
davas guinchos, meu saguim!
— Tu és o papagaio de teus pais!
Mas há mais, muito mais
que a tua ignorância-miopia te cega.
Empresto-te a minha Inteligência.
Toma!
Vê agora e não desmaies ainda!
Então eu não tinha razão?
Pra que me chamavas doido
quando eu m'enjoava de ti?
Ah! Já tens medo?
Porque te rias da vida
e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas
co' as pernas fogo de vistas
das coristas de petróleo?
Porque davas palmas aos compères e actorecos
pelintras e fantoches
antes do palco, no palco e depois do palco?
Ora dize-Me com franqueza:
Era por eles terem piada?
Então era por a não terem:
Ah! Era pra tu teres piada, meu bruto?!
Porque mandaste de castigo os teus filhos pràs Belas-Artes
quando ficaram mal na instrução primária?
Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota
estuda pra  poeta?
Porque te casaste com a tua mulher
se dormes mais vezes co' a tua criada.?
Porque bateste no teu filho quando a mestra
te contou as indecências na aula?
Não te lembras das que tu fizeste
Com a própria mestra de moral?
Ou queres tu ser decente —
tu, que tens dezanove filhos?
Porque choraste tanto quando te desonraram a filha?
Porque lhe quiseste matar o amante?
Não achas isto natural? não achas isto interessante?
Porque não choraste também pelo amante?...
Deixa! deixa! eu não te quero morto com medo de ti-próprio!
Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer!
Não te despetes do alfinete!
Eu abro a janela pra não cheirar mal!
Galopa a tua bestialidade
na memória que eu faço dos teus coices,
cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte!
Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos.
Encabresta-te de Humanidade
e eu passo-te uma zoologia para as mãos
pra te inscreveres na divisão dos Mamíferos.
Mas anda primeiro ao jardim Zoológico!
Vem ver os chimpanzés!
Acorpanzila-te neles se te ousas!
Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem!
Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar
não quer dizer que sejas mais chimpanzé que eles!
Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados.
anémicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards.
esse vaivém cínico de bandidos mudos.
esse mexer esponjoso de carne viva,
esse ser-lesma nojento e macabro.
esse zig-zag de chicote auto-fustigante,
esse ar expirado e espiritista,
esse Inferno de Dante por cantar,
esse ruído de sol prostituído, impotente e velho,
esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás — vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro: deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste:
Larga tudo!
— Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
— Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
A Inteligência é o meu cancro:
eu sinto-A na cabeça com falta d’ar!
A Inteligência é a febre da Humanidade
e ninguém a sabe regular!
E já há inteligência a mais: pode parar por aqui!
Depois põe-te a viver sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra,
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
— Põe-te na natureza!
Ouve  a Terra, escuta-A.
A natureza à vontade  SÓ sabe rir cantar!
Depois põe-te à coca dos que nascem
e não os deixes nascer.
Vai depois pela noite nas sombras
e ronba a tod
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio
abismo-descida de Eu não querer descer!
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina!
Hei-de ser cigana da tua sina!
Hei-de ser a bruxa do teu remorso!
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas-fortes de Goya
e no cavalo de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei-de feiticeira a galope na vassoira
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei-de vara mágica encantar-te arte de ganir!
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne viva deitar fel,
e depois na carne viva semear vidros,
semear gumes,
lumes.
e tiros.
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!
Hei-de rasgar-te as vrilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
0 negro pendão dos piratas!
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei-de bóia do Destino ser em brasa
e tu náufrago das galés sem horizontes verdes!
E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei-de ser a mulher que tu gostes,
hei-de ser Ela sem te dar atenção!

Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!


Lisboa, 14 de maio de 1915.


Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe no dia 7 de abril de 1893. Escritor e artista plástico, ajudou a fundar a revista Orpheu, veículo de introdução do modernismo em Portugal. Como escritor é autor de vasta obra inovadora que inclui prosa, poesia e teatro. Morreu em 15 de julho de 1970 em Lisboa. 


Publicado inicialmente no site da Casa Fernando Pessoa.