sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

carta

um detalhe,
um canto mais amargo do seu sorriso
sob a lua da cidade,
palavras sugeridas num sarro dos ombros
enquanto as sombras da noite nos ultrapassavam,

de pouco me recordo, as imagens se apagam,
mesmo a sua ao telefone, indiferente,
à partida, ao nosso desejo, ao corte de tudo,
- triste representação!

até logo, uma cerveja, um baseado,
dois, três, cinco cigarros e a parede suja
do quarto quando nada mais parece adiantar,
os ridículos milhares de quilômetros,
este inverno turco,
os pulmões encardidos,
este beco sem saída,

e você?


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Publicado inicialmente no blog O único e verdadeiro Deus vivo.

Um poema de António Botto





Poema de cinza

À Memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns Senhores que tu já conhecias
– Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!




António Botto nasceu em 1897, no concelho de Abrantes. Aos 24 anos escreve Canções, obra mais importante de sua poética. Viveu algum tempo em Angola onde trabalhou funcionário como público; no regresso, toma posse no Governo Civil de Lisboa e depois é nomeado escriturário de 2ª classe do Arquivo geral de Registo Criminal e Policial. Em 1942 foi demitido da função pública – demissão e não aposentação compulsiva, o que não lhe deu direito a qualquer pensão – por fatos que foram subsumidos ao conceito indeterminado de "falta de idoneidade moral". No ano de 1947, decide partir para o Brasil; morreu no Rio de janeiro, como consequência de acidente, em 1959.