O BICHO
HARMONIOSO
Eu gostava
de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja
tristeza agrava os adolescentes
E as
raparigas que os lêem quando eles já são tão leves
Que passam a
tarde numa estrela,
A força do calor
na bica de uma fonte
E a noite no
mar ou no risco dos pirilampos.
Assim,
gloriosos mas sem porta a que se bata,
Abstractos mas
vivos,
Rarefeitos mas
com hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos
lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às
ervas grossas da chuva
E indispensável
aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco.
Ser a vida e
não ter já vida – era um destino.
Depois, dar
a minha Mãe a glória de me ter tido,
A meu Pai,
vendado de terra, um halo de minha luz, e tocar tudo,
Onde eu
houvesse estado, de uma sagração natural:
Não digo como
as Virgens Aparecidas,
Que tornam mudos
e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo
orvalho de que me lembro, em pequeno,
Para lá da
janela a luz cortada por chuva,
E uma prima
que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao
fundo.
Tudo isto, e
vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma
mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de
morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir,
vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor
forrado de desgosto,
Como as
estrelas encobertas,
Que, depois
de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto
seria aquele poeta que não sou,
Feito graça
e memória,
Separado de
mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das
minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser
voraz que se explora e ilumina.
Mas não. Do canto
necessário
Para me
diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o
nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a
soltar senão uma vaga nota,
E a noite
faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco
vil de bicho harmonioso.
Deixarei,
estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem
fremente dos meus dedos num pouco de terra,
Estranho
fóssil!
A CONCHA
A minha casa
é concha. Como os bichos
Segreguei-a
de mim com paciência:
Fachada de
marés, a sonho e lixos,
O horto e os
muros só areia e ausência.
Minha casa
sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado
de inocência
Se às vezes
dá uma varanda, vence-a
O sal que os
santos esboroou nos nichos.
E telhados
de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas
de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta
ao vento, as salas frias.
A minha casa...
Mas é outra a história:
Sou eu ao
vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa
pedra de memória.
ARTE POÉTICA
A poesia do
abstracto?
Talvez.
Mas um pouco
de calor,
A exaltação
de cada momento,
É melhor.
Quando sopra
o vento
Há um corpo
na lufada;
Quando o
fogo alteou
A primeira
fogueira,
Apagando-se
fica alguma coisa queimada.
É melhor!
Uma ideia,
Só como
sangue de problema:
No mais, não.
Não me
interessa.
Uma ideia
Vale como
promessa,
E prometer é
arquear
A grande flecha.
O flanco das
coisas só sangrando me comove,
E uma
pergunta é dolorida
Quando abre
brecha.
Abstracto!
O abstracto
é sempre redução,
Secura.
Perde;
E diante de
mim o mar que se levanta é verde:
Molha e
amplia
Por isso, não:
Nem o abstracto
nem o concreto
São propriamente
poesia.
Poesia é
outra coisa.
Poesia e
abstracto, não.
•
Vitorino
Nemésio nasceu em Praia da Vitória a 19 de dezembro de 1901. Escreveu poesia e
prosa (romance, crônica, textos acadêmicos). Sua obra está entre as
responsáveis pelas transformações de tendências da revista Presença.
Fortemente marcado pelas raízes insulares, a vida açoriana e as recordações da
infância. Dos livros de poesia, podemos citar, entre outros, O bicho
harmonioso, seu primeiro título nesse gênero, de 1938, Nem toda a noite
a vida (1935), O verbo e a morte (1959), Poemas brasileiros
(1972) e Meu coração é como peixe cego (1942). Morreu a 20 de fevereiro
de 1978.