terça-feira, 24 de abril de 2012

Dois poemas de Mário Cesariny



YOU ARE WELCOME TO ELSINORE 

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte     violar-nos     tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas     portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida     há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmera escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os
olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã à bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

 

Mário Cesariny nasceu a 9 de agosto de 1923 em Lisboa, cidade onde viveu até a 26 de novembro de 2006. Sua incursão pelo universo da literatura principia do convívio com os autores do neo-realismo e mais adiante do surrealismo, depois de uma estadia na França, onde convive com André Breton. Tonar-se um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, no retorno ao seu país e começa a construir sua obra literária que aparece em revistas como a Pirâmide. O primeiro livro data de 1950, Corpo visível e depois veio, em ritmo constante outras dezenas deles, entre os quais destacam-se Pena capital (1957), As mãos na água e a cabeça no mar (1972), O Virgem Negra (1989), Titânia (1994) e A alma e o mundo (1997).  


quarta-feira, 18 de abril de 2012

Dois poemas de Antero de Quental


A um poeta

Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!


Aparição

Um dia, meu amor, (e talvez cedo,
Que sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo…

Então, da casta alcova no segredo,
Da lamparina no trêmulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vão,
Larva fugida ao sepulcral degredo…

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
E aflitos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos…

— “Ouve! espera!” — Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
E como fumo sumir-me-ei no ar!

 •

Antero de Quental nasceu em 18 de abril de 1842 em Ponta Delgada, Açores. Presença fundamental no movimento da Geração de 70 deixou extensa obra em prosa de intervenção e poesia, como Sonetos de Antero (1861) e Odes modernas (1865). Morreu em 11 de setembro de 1891. 


segunda-feira, 9 de abril de 2012

Um poema de Reinaldo Arenas



QUANDO LHE DISSERAM

       Quando lhe disseram que estava vigiado
que à noite quando ele saía
alguém com uma chave-mestra entrava na habitação
e remexia nos frascos de aspirina
e nos consabidos, indiferentes, livros;
        quando lhe disseram que dezenas de polícias
em sua honra se afadigavam,
que tinham conseguido subornar os seus familiares mais
         chegados,
que os seus amigos íntimos
ocultavam atrás dos testículos pequenos livretes
onde anotavam os seus silêncios e vírgulas,
                                                  não sentiu medo,
mas sim uma certa sensação de enfado
que instantaneamente soube controlar:
Não vão conseguir, prometeu a si mesmo, que me considere
         importante.


* Tradução de Jorge Melícias.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Dois poemas de Wisława Szymborska





FOTOGRAFIA DE 11 DE SETEMBRO

Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.

Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.

Ainda estão no âmbito do ar,
ao alcance dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.


A ALEGRIA DA ESCRITA

Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Vai beber da água escrita.
que lhe copia o focinho como papel-carbono?
Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade
sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio – também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta
os ramos que a palavra "bosque" originou.

Na folha branca se aprontam para o salto
as letras que podem se alojar mal
as frases acossantes,
perante as quais não haverá saída.

Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo,
rodear a corça, preparar o tiro.

Esquecem-se de que isso não é a vida.
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,
e se deixar dividir em pequenas eternidades
cheias de balas suspensas no voo

Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.

Existe então um mundo assim
sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por meu comando?

A alegria da escrita.
O poder de preservar
A vingança da mão mortal.


Poeta e ensaísta, Wisława Szymborska nasceu a 2 de julho de 1923 em Bnin, Polônia. Em 1931 mudou-se com a família para a Cracóvia, onde viveu até 1º de fevereiro de 2012. Estudou Literatura e Sociologia, trabalhou por quase trinta anos na revista literária Zycie Literackie. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1996.

* Traduções de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves