quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Dois poemas de e. e. cummings


à atemporalidade e ao tempo igual,
o amor não tem início nem final:
se nada andar nadar nem respirar
o amor serão o vento a terra e o mar

(amantes sofrem? cada divindade
lhes veste a pele com mortal vaidade:
amantes são felizes? seu querer
cria universos ao menor prazer)

amor é a voz por trás do que se cala,
esperança que o medo não cancela:
força tão forte que nem força abala:
verdade antes do sol e além da estrela

– amantes amam? ora, o tolo e o esperto
que preguem céu e inferno, tudo certo


*

amo você (mais linda namorada)
como a ninguém na terra inteira e eu
amo-a bem mais que tudo que há no céu

– há luz solar e canto à sua chegada

embora o inverno espalhe em toda parte
tanto silêncio e tanta escuridão
que ninguém mais percebe outra estação

grassar na vida (minha vida à parte) –

e se o que se diz mundo por favor
ou sorte ouvisse o canto (ou visse que
a luz do meio-dia se avizinha
quão mais feliz o coração caminha

a perto de mais perto de você
creria (namorada) só no amor

E. E. Cummings (ou, tal como o poeta se assinava, e. e. cummings) nasceu a 14 de outubro de 1894 em Cambridge. Publicou o primeiro livro em 1923 e desde então constrói uma obra inovadora no âmbito em língua inglesa com forte interesse por uma poesia construtivista. O tratamento experimental estende-se ainda à prosa, gênero também praticado por Cummings. O poeta morreu no dia 3 de setembro de 1962.  


* Traduções de Gil Pinheiro.


Poesia necessária




1
De palavras novas também se faz país
neste país tão feito de poemas
que a produção e tudo a semear
terá de ser cantado noutro ciclo.

2
É fértil este tempo de palavras
em busca do poema
que foge na curva das palavras
usadamente soltas e antigas
distantes das verdades dos rios
do quente necessário das brasas
do latejar silencioso das sementes
dentro da terra
quando chove.

3
Proponho um verso novo
para as laranjas (por exemplo) matinais
e os namorados
com que havemos de encher todos os dias
os mercados.

4
Proponho um verso novo
para as guelra do peixe sem contar
para a abundância da carne
e a liberdade das aves desenhada
no amor das escolas
dos campos
e das fábricas.

5
Proponho um verso novo
para o leite obrigatório em cada dia
e a medalha olímpica
que o riso das crianças já promete.

6
Proponho um verso novo
para o milho a mandioca suculenta
o amadurecido cacho de dendém
alegre na fartura dos dedos
e das bocas.

7
Produzir na palavra
É semear e colher
É cumprir na escrita
A produção.

8
Produzir na palavra
É cantar no poema
Todas as raízes
Deste chão.


.................
RUI, Manuel. 11 Poemas em Novembro. Luanda: Ed. Lavra e Oficina, 1976

sábado, 25 de agosto de 2012

Dois fragmentos de "Uivo", de Allen Ginsberg

Allen Ginsberg em San Francisco,1955. Foto: Sunday Book Review


Para Carl Solomon
 I

Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela 
    loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, 
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
    em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
    contato celestial com o dínamo estrelado da 
    maquinaria da noite,
que pobres esfarrapados e olheiras fundas, viajaram 
    fumando sentados na sobrenatural escuridão dos
    miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando
    sobre os tetos das cidades contemplando o jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado
    e viram anjos maometanos cambaleando iluminados
    nos telhados das casas de cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e 
    radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz 
    de Blake entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos
    & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura
    descascada em roupa de baixo queimando seu 
    dinheiro em cestos de papel escutando o Terror 
    através da parede,
que foram detidos em suas barbas púbicas voltando
    por Laredo com um cinturão de marihuana para 
    Nova Iorque,
que comeram fogo em hotéis mal pintados ou
    beberam terebentina em Paradise Alley, morreram ou
    flagelaram seus torsos noite após noite com
    som, sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília,
    álcool e caralhos em intermináveis orgias,
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula,
    e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de 
    Canadá & Paterson, iluminando completamente o
    mundo imóvel do Tempo intermediário,
solidez de Peiote dos corredores, aurora de fundo de 
    quintal das verdes árvores do cemitério, porre de vinho
    nos telhados, fachadas de lojas de subúrbio 
    na luz cintilante de neon do tráfego na 
    corrida de cabeça feita do prazer, vibrações de 
    sol e lua e árvore no tronco de crepúsculo de 
    inverno de Brooklyn, declamações entre latas 
    de lixo e a suave soberana luz da mente,
que se acorrentaram aos vagões do metrô para o
    infindável percurso do Battery ao sagrado Bronx
    de benzedrina até que o barulho das rodas e 
    crianças os trouxesse de volta, trêmulos, a boca 
    arrebentada o despovoado deserto do cérebro
    esvaziado de qualquer brilho na lúgubre luz do Zoológico,
que afundaram a noite toda na luz submarina 
    de Bickford´s, voltaram à tona e passaram a tarde
    de cerveja choca no desolado Fuggazi´s escutando
    o matraquear da catástrofe na vitrola 
    automática de hidrogênio,
que falaram setenta e duas horas sem parar do
    parque ao apê ao bar ao Hospital Bellevue ao 
    Museu à Ponte do Brooklyn,
batalhão perdido de debatedores platônicos saltando
    dos gradis das escadas de emergência dos parapeitos
    das janelas do Empire State da Lua,
tagarelando, berrando, vomitando, sussurrando fatos
    e lembranças e anedotas e viagens visuais e choques
    nos hospitais e prisões e guerras,
intelectos inteiros regurgitados em recordação total 
    com os olhos brilhando por sete dias e noites,
    carne para a sinagoga jogada à rua,
que desapareceram no Zen de Nova Jersey de 
    lugar algum deixando um rastro de postais ambíguos
    do Centro Cívico de Atlantic City,
sofrendo suores orientais, pulverizações tangerianas
    de ossos e enxaquecas da China por causa da 
    falta da droga no quarto pobremente mobiliado de Newark,
que deram voltas e voltas à meia noite no pátio da 
    ferrovia perguntando-se aonde ir e foram, sem
    deixar corações partidos,
que acenderam cigarros em vagões de carga, vagões 
    de carga, vagões de carga, que rumavam ruidosamente 
    pela neve até solitárias fazendas dentro da noite do avô,
que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia
    e bop-cabala pois o Cosmos instintivamente
    vibrava a seus pés em Kansas,
que passaram solitários pelas ruas de Idaho procurando
    anjos índios e visionários que eram anjos índios e visionários
que só acharam que estavam loucos quando Baltimore
    apareceu em estase sobrenatural,
que pularam em limusines com o chinês de Oklahoma
    no impulso da chuva de inverno na luz das ruas
    da cidade pequena à meia-noite,
que vaguearam famintos e sós por Huston procurando
    jazz ou sexo ou rango e seguiram o espanhol 
    brilhante para conversar sobre a América e a Eternidade,
    inútil tarefa, e assim embarcaram
    num navio para a África,
que desapareceram nos vulcões do México 
    nada deixando além da sombra das suas calças
    rancheiras e a lava e a cinza da poesia espalhadas
    pela lareira Chicago,
que reapareceram na Costa Oeste investigando o FBI
    de barba e bermudas com grandes olhos pacifistas
    e sensuais nas suas peles morenas, distribuindo
    folhetos ininteligíveis,
que apagaram cigarros acesos nos seus braços
    protestando contra o nevoeiro narcótico de 
    tabaco do Capitalismo,
que distribuiram panfletos supercomunistas em Union
    Square, chorando e despindo-se enquanto as 
    Sirenes de Los Alamos os afugentavam gemendo
    mais alto que eles e gemiam pela Wall Street e 
    também gemia a balsa de Staten Island
que caíram em prantos em brancos ginásios desportivos,
    nus e trêmulos diante da maquinaria de outros esqueletos,
que morderam policiais no pescoço e berraram de 
    prazer nos carros de presos por não terem cometido 
    outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica,
que uivaram de joelhos no metrô e foram arrancados do 
    telhado sacudindo genitais e manuscritos,
que se deixaram foder no rabo por motociclistas 
    santificados e berraram de prazer,
que enrabaram e foram enrabados por esses serafins
    humanos, os marinheiros, carícias de amor
    atlântico e caribeano,
que transaram pela manhã e ao cair da tarde em 
    roseirais, na grama de jardins públicos e cemitérios,
    espalhando livremente seu sêmen para 
    quem quisesse vir,
que soluçaram interminavelmente tentando gargalhar
    mas acabaram choramingando atrás de um tabique
    de banho turco onde o anjo loiro e nu veio 
    trespassá-los com sua espada,
que perderam seus garotos amados para as três
    megeras do destino, a megera caolha do dólar heterossexual, megera caolha que pisca de 
    dentro do ventre e a megera caolha que só sabe 
    sentar sobre sua bunda retalhando os dourados 
    fios intelectuais do tear do artesão,
que copularam em êxtase insaciável com um garrafa
    de cerveja, uma namorada, um maço de cigarros, uma
    vela, e caíram na cama e continuaram 
    pelo assoalho e pelo corredor e terminaram 
    desmaiando contra a parede com uma visão da 
    boceta final e acabaram sufocando o derradeiro lampejo da 
    consciência,
que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas
    trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos
    no dia seguinte mesmo assim prontos
    para adoçar trepadas na aurora, bundas luminosas 
    nos celeiros e nus no lago,
que foram transar em Colorado numa miríade de 
    carros roubados à noite, N.C., herói secreto destes
    poemas, garanhão e Adônis de Denver – prazer 
    ao lembrar suas incontáveis trepadas com garotas
    em terrenos baldios & pátios dos fundos de 
    restaurantes de beira de estrada, raquíticas fileiras 
    de poltronas de cinema, picos de montanha
    cavernas com esquálidas garçonetes no 
    familiar levantar de saias solitário à beira da 
    estrada & especialmente secretos solipsismos de
    mictórios de postos de gasolina & becos da cidade
    natal também,
que se apagaram em longos filmes sórdidos, foram 
    transportados em sonho, acordaram num
    Manhattan súbito e conseguiram voltar com uma
    impiedosa ressaca de adegas de Tokay e horror 
    dos sonhos de ferro da Terceira Avenida &
    cambalearam até as agências de desemprego,
que caminharam a noite toda com os sapatos cheios
    de sangue pelo cais coberto por montões de 
    neve, esperando que uma porta se abrisse no
    East River dando para um quarto cheio de vapor e ópio,
que criaram grandes dramas suicidas nos penhascos
    de apartamentos do Huston à luz azul de holofote
    antiaéreo da luta & suas cabeças receberão
    coroas de louro no esquecimento,
que comeram o ensopado de cordeiro da imaginação
    ou digeriram o caranguejo do fundo lodoso dos
    Rios de Bovery,
que choraram diante do romance das ruas com seus
    carrinhos de mão cheios de cebola e péssima música,
que ficaram sentados em caixotes respirando a 
    escuridão sob a ponte e ergueram-se para construir
    clavicórdios em seus sótãos, 
que tossiram num sexto andar do Harlem coroando de
    chamas sob um céu tuberculoso rodeados pelos
    caixotes de laranja da teologia,
que rabiscaram a noite toda deitando e rolando sobre
    invocações sublimes que ao amanhecer amarelado
    revelaram-se versos de tagarelice sem sentido,
que cozinharam animais apodrecidos, pulmão coração 
    pé rabo borsht & tortilhas sonhando com 
    o puro reino vegetal, 
que se atiraram sob caminhões de carne 
    em busca de um ovo,
que jogaram seus relógios do telhado fazendo seu
    lance de aposta pela Eternidade fora do Tempo 
    & despertadores caíram em suas cabeças por
    todos os dias da década seguinte,
que cortaram seus pulsos sem resultado três vezes
    seguidas, desistiram e foram obrigados a abrir
    lojas de antiguidades onde acharam que estavam
    ficando velhos e choraram,
que foram queimados vivos em seus inocentes 
    ternos de flanela em Madison Avenue no meio das
    rajadas de versos de chumbo & o estrondo contido
    dos batalhões de ferro da moda & os guinchos
    de nitroglicerina das bichas da propaganda & 
    o gás mostarda de sinistros editores inteligentes 
    ou foram atropelados pelos taxis bêbados
    da Realidade Absoluta,
que se jogaram da ponte de Brooklyn, isso realmente
    aconteceu, e partiram esquecidos e desconhecidos 
    para dentro da espectral confusão das ruelas
    de sopa & carros de bombeiros de Chinatown,
    nem uma cerveja de graça,
que cantaram desesperados nas janelas, jogaram-se
    da janela do metrô saltaram no imundo rio
    Paissac, pularam nos braços dos negros, choraram
    pela rua afora, dançaram sobre garrafas
    quebradas de vinho descalços arrebentando
    nostálgicos discos de jazz europeu dos anos 30
    na Alemanha, terminaram o whisky e vomitaram 
    gemendo no toalete sangrento, lamentações nos 
    ouvidos e o sopro de colossais apitos a vapor,
que mandaram brasa pelas rodovias do passado
    viajando pela solidão da vigília da cadeia de 
    Gólgota de carro envenenado de cada um ou então
    a encarnação do Jazz de Birmingham,
que guiaram atravessando o país durante setenta e duas
    horas para saber se eu tinha tido uma visão ou se ele tinha
    tido uma visão para descobrir a Eternidade,
que viajaram para Denver, que morreram em Denver,
    que retornaram a Denver & esperaram em vão,
    que espreitaram Denver & ficaram parados pensando
    & solitários em Denver e finalmente partiram 
    para descobrir o Tempo & agora Denver está 
    saudosa de seus heróis,
que caíram de joelhos em catedrais sem esperança
    rezando por sua salvação e luz e peito até que a 
    alma iluminasse seu cabelo por um segundo,
que se arrebentassem nas suas mentes na prisão 
    aguardando impossíveis criminosos de cabeça 
    dourada e o encanto da realidade em seus corações
    que entoavam suaves blues de Alcatraz,
que se recolheram ao México para cultivar um
    vício ou às Montanhas Rochosas para o suave
    Buda ou Tânger para os garotos do Pacífico Sul
    para a locomotiva negra ou Havard para Narciso
    para o cemitério de Woodlaw para a coroa 
    de flores para o túmulo,
que exigiram exames de sanidade mental acusando 
    o rádio de hipnotismo & foram deixados com sua 
    loucura & e mãos & um júri suspeito,
que jogaram salada de batata em conferencistas da 
    Universidade de Nova Iorque sobre Dadaísmo
    e em seguida se apresentaram nos degraus de 
    granito do manicômio com cabeças raspadas e 
    fala de arlequim sobre suicídio, exigindo 
    lobotomia imediata,
e que em lugar disso receberam o vazio concreto da
    insulina metrazol choque elétrico hidroterapia
    psicoterapia terapia ocupacional pingue-pongue
    & amnésia,
que num protesto sem humor viraram apenas uma
    mesa simbólica de pingue-pongue mergulhando 
    logo a seguir na catatonia, 
voltando anos depois, realmente calvos exceto por 
    uma peruca de sangue e lágrimas e dedos 
    para a visível condenação de louco nas celas das
    cidades-manicômio do Leste,
Pilgrim State, Rockland, Greystone, seus corredores
    fétidos, brigando com os ecos da alma, agitando-se
    e rolando e balançando no banco de solidão à 
    meia-noite dos domínios de mausoléu
    druídico do amor, o sonho da vida um 
    pesadelo, corpos transformados em pedras
    tão pesadas quanto a lua,
com a mãe finalmente ***** e o último livro
    fantástico atirado pela janela do cortiço e a última
    porta fechada às 4 da madrugada e o último 
    telefone arremessado contra a parede em 
    resposta e o último quarto mobiliado esvaziado até
    a última peça de mobília mental, uma rosa de papel
    amarelo retorcida num cabide de arame do armário
    e até mesmo isso imaginário, nada mais 
    que um bocadinho esperançoso de alucinação –
ah, Carl, enquanto você não estiver a salvo eu não
    estarei a salvo e agora você está inteiramente
    mergulhado no caldo animal total do tempo – 
e que por isso correram pelas ruas geladas obcecadas
    por um súbito clarão da alquimia do uso da elipse
    do catálogo do metro inviável & do plano vibratório,
que sonharam e abriram brechas encarnadas no 
    Tempo & Espaço através de imagens justapostas 
    e capturaram o arcanjo da alma entre 2 imagens
    visuais e reuniram os verbos elementares e 
    juntaram o substantivo e o choque da consciência
    saltando numa sensação de Pater Omnipotens
    Aeterne Deus,
para recriar a sintaxe e a medida da pobre prosa 
    humana e ficaram parados à sua frente, mudos e
    inteligentes e trêmulos de vergonha, rejeitados
    todavia expondo a alma para conformar-se ao
    ritmo do pensamento em sua cabeça nua e infinita,
o vagabundo louco e Beat angelical no Tempo, 
    desconhecido mas mesmo assim deixando aqui 
    o que houver para ser dito no tempo após a morte,
e se reergueram reencarnados na roupagem 
    fantasmagórica do jazz no espectro de trompa
    dourada da banda musical e fizeram soar o 
    sofrimento da mente nua da América pelo 
    amor num grito de saxofone de eli eli lama lama
    sabactani que fez com que as cidades tremessem
    até seu último rádio,
com o coração absoluto do poema da vida arrancado
    de seus corpos bom para comer por mais mil anos.

II

Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus
   crânios e devorou seus cérebros e imaginação?
Moloch! Solidão! Sujeira! Fealdade! Latas de
   lixo o dólares intangíveis! Crianças berrando 
   sob as escadarias! Garotos soluçando nos 
   exércitos! Velhos chorando nos parques!
Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o 
   mal-amado! Moloch mental! Moloch o pesado
   juiz dos homens!
Moloch a incompreensível prisão! Moloch o 
   presídio desalmado de tíbias cruzadas e o Congresso
   dos Sofrimentos! Moloch cujos prédios são 
   julgamento! Moloch a vasta pedra da guerra!
   Moloch os governos atônitos!    
Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo
   sangue é dinheiro corrente! Moloch cujos
   dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é
   um dínamo canibal! Moloch cujo ouvido é
   um túmulo fumegante!
Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! Moloch
   cujos arranha-céus jazem ao longo de ruas como
   infinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas sonham
   e grasnam na neblina! Moloch cujas colunas de fumaça
   e antenas coroam as cidades!
Moloch cujo amor é interminável óleo e pedra!
   Moloch cuja alma é eletricidade e bancos!
   Moloch cuja pobreza é o espectro do gênio!
   Moloch cujo destino é uma nuvem de hidrogênio
   sem sexo! Moloch cujo nome é a Mente!
Moloch em que permaneço solitário! Moloch em 
   que sonho com anjos! Louco em Moloch!
   Chupador de caralhos em Moloch! Mal-amado
   e sem homens em Moloch!
Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch
   em quem sou uma consciência sem corpo!
   Moloch que me afugentou do meu êxtase natural! 
   Moloch a quem abandono! Despertar em Moloch!
   Luz escorrendo do céu!
Moloch! Moloch! Apartamentos de robôs! Subúrbios 
   invisíveis! Tesouros de esqueletos! Capitais cegas!
   Indústrias demoníacas! Nações espectrais!
   Invencíveis hospícios! Caralhos de granito!
   Bombas monstruosas!
Eles quebraram suas costas erguendo Moloch ao Céu!
   Calçamento, arvores, rádios, toneladas! Levantando 
   a cidade ao Céu que existe e está em todo lugar 
   ao nosso redor!
Visões! Profecias! Alucinações! Milagres! Êxtases!
   Descendo pela correnteza do rio americano!
Sonhos! Adorações! Iluminações! Religiões! O 
   carregamento todo em bosta sensitiva!
Desabamentos! Sobre o rio! Saltos e crucificações!
    Descendo a correnteza! Ligados! Epifanias!
    Desesperos! Dez anos de gritos animais e suicídios! 
   Mentes! Amores novos! Geração louca! Jogados
   nos rochedos do Tempo!
Verdadeiro riso no santo rio! Eles viram tudo! O olhar
   selvagem! Os berros sagrados! Eles deram adeus!
   Pularam do telhado! Rumo à solidão! Acenando! Levando
   flores! Rio abaixo! Rua acima!

III

Carl Solomon! Eu estou com você em Rockland
   onde você está mais louco do que eu
Eu estou com você em Rockland
   onde você deve sentir-se muito estranho
Eu estou com você em Rockland
   onde você imita a sombra da minha mãe
Eu estou com você em Rockland
   onde você assassinou suas doze secretárias
Eu estou com você em Rockland
   onde você ri desse humor invisível
Eu estou com você em Rockland
   onde somos grandes escritores na mesma
   abominável máquina de escrever
Eu estou com você em Rockland
   onde seu estado se tornou muito grave e é
   noticiado pelo rádio
Eu estou com você em Rockland
   onde as faculdades do crânio não agüentam 
    mais os vermes dos sentidos
Eu estou com você em Rockland
   onde você bebe o chá dos seios das solteironas
   de Utica
Eu estou com você em Rockland
   onde você bolina os corpos das suas 
   enfermeiras as harpias do bronx
Eu estou com você em Rockland
   onde você grita de dentro de uma camisa de
   força que está perdendo o verdadeiro jogo
   de pingue-pongue do abismo
Eu estou com você em Rockland
   onde você martela o piano catatônico a alma
   é inocente e imortal e nunca poderia morrer 
   impiamente num hospício armado,
Eu estou com você em Rockland
   onde com mais de cinqüenta eletrochoques 
   sua alma nunca mais retornará a seu corpo de
   volta de sua peregrinação rumo a uma cruz
   no vazio
Eu estou com você em Rockland
   onde você acusa seus médicos de loucura e 
   prepara a revolução socialista hebraica contra
   o Gólgota nacional e fascista
Eu estou com você em Rockland
   onde você rasga os céus de Long Island e faz
   surgir seu Jesus vivo e humano do túmulo 
   sobre-humano
Eu estou com você em Rockland
   onde há mais de vinte e cinco mil camaradas
   loucos todos juntos cantando os versos finais da 
   Internacional 
Eu estou com você em Rockland
   onde abraçamos e beijamos os Estados Unidos 
   sob nossas cobertas Estados Unidos que 
   tossem a noite toda e não nos deixam dormir
Eu estou com você em Rockland
   onde despertamos eletrocutados do coma pelos
   nossos próprios aeroplanos da mente roncando
   sobre o telhado eles vieram jogar bombas 
   angelicais o hospital ilumina-se paredes imaginárias
   desabam Ó legiões esqueléticas correi para fora 
   Ó choque de misericórdia salpicado de estrelas 
   a guerra eterna chegou Ó vitória esquece tua roupa
   de baixo estamos livres
Eu estou com você em Rockland
   nos meus sonhos você caminha gotejante de volta
   de uma viagem marítima pela grande rodovia que
   atravessa a América em lágrimas até a porta do
   meu chalé dentro da Noite Ocidental.


* Tradução de Claudio Willer

Três poemas de Camilo Pessanha






...e lhe regou de lágrimas os pés e os
enxugou com os cabelos da sua cabeça.
        
Evangelho de S. Lucas.
   

Ó Madalena, ó cabelos de rastos,
Lírio poluído, branca flor inútil,
Meu coração, velha moeda fútil,
E sem relevo, os caracteres gastos,
       
De resignar-se torpemente dúctil,
Desespero, nudez de seios castos,
Quem também fosse, ó cabelos de rastos,
Ensanguentado, enxovalhado, inútil,
         
Dentro do peito, abominável cómico!
Morrer tranquilo, — o fastídio da cama.
Ó redenção do mármore anatómico,
           
Amargura, nudez de seios castos!...
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama,
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!


*

Imagens que passais pela retina 
Dos meus olhos, porque não vos fixais? 
Que passais como a água cristalina 
Por uma fonte para nunca mais!… 

Ou para o lago escuro onde termina 
Vosso curso, silente de juncais, 
E o vago medo angustioso domina, 
— Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos? 
— O espelho inútil, meus olhos pagãos! 
Aridez de sucessivos desertos… 

Fica sequer, sombra das minhas mãos, 
Flexão casual de meus dedos incertos, 
— Estranha sombra em movimentos vãos.

*

O meu coração desce
Um balão apagado...
— Melhor fora que ardesse,
Nas trevas, incendiado.

Na bruma fastidienta,
Como um caixão à cova...
— Porque antes não rebenta
De dor violenta e nova?!

Que apego ainda o sustém?
Átomo miserando...
— Se o esmagasse o trem
Dum comboio arquejando!...

O inane, vil despojo
Da alma egoísta e fraca!
Trouxesse-o o mar de rojo,
Levasse-o na ressaca.


Camilo Pessanha nasceu a 7 de setembro de 1867, em Coimbra. Um dos nomes mais importantes do simbolismo na literatura portuguesa, sua obra serviu a importantes outros poetas de seu país, como Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Formado em Direito na Universidade de Coimbra, deixou a cidade para atuar primeiro em Óbidos e depois em Macau, onde, foi professor de filosofia, conservador do registo predial e depois juiz de comarca. Ainda regressou a Portugal algumas vezes, mas, foi na província portuguesa no Oriente onde passou o resto da vida até 1.º de março de 1926. Seu principal livro é Clepsidra, publicado em 1920. Deixou ainda ensaios, contos, crônicas e poemas esparsos.

      

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Dois poemas de Jorge Luis Borges


ARTE POÉTICA

Fitar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

No dia ou no ano ver um símbolo
Dos dias de um homem e de seus anos,
Transformar o ultraje desses anos
Em música, em rumor e em símbolo,

Na morte ver o sonho, ver no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes certo rosto
Contempla-nos do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nosso próprio rosto.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, sem prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


A CHUVA

A tarde se aclarou de inesperado
Porque já cai a chuva minuciosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que sem dúvida ocorre no passado.

Esta chuva que agora ofusca os vidros
Vai alegrar em subúrbios perdidos
As pretas uvas de uma parra no horto

Que deixou de existir. Esta molhada
Tarde me traz a voz, a voz ansiada,
De meu pai que retorna e não está morto.

Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires a 24 de agosto de 1899. Escreveu prosa (contos e ensaios) e poesia, gênero pelo qual sempre gostaria de ser reconhecido. Dentre suas principais obras, destacam-se Ficções (1944), O Aleph (1949); na poesia é o autor de títulos como Fervor de Buenos Aires (1923), O fazedor (1960), O outro, o mesmo (1969), Elogio da sombra (1969), Os conjurados (1985). Morreu a 14 de junho de 1986, em Genebra.  



* Tradução Josely Vianna Baptista

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

4 poemas de António Carlos Cortez


Lente

De tarde tudo começava
e lá fora a elipse do vento
desenhava a casa e circulava
um perímetro maior de desalento

Era como se a poesia me ofuscasse
e o corpo em suspensão se mantivesse
à espera da morte ou regressasse à vida
depois do amor que se fizesse

Era a lente de aumentar essa paisagem
quase familiar mas indiferente
de rostos junto ao teu
Mas a imagem diminui
agora o mundo lentamente


Variação

Regressas sempre aos versos
A arte torpe das palavras
A fala o fingimento de verdade
A arte a canção dos mais pobres
de todos os sobreviventes
Calas quanto sabes mas escreves
Por metáforas e símbolos
as ruínas do corpo e do palato
essa hostil lâmpada
sabes que corremos como cortina
escura o sentido literal da palavra
Arda no silêncio com que
nos afastamos ou morremos
a palavra da esperança
No longo silêncio que se arrasta
nenhuma flor nos basta


Um barco no rio (2002, 2009)

Rompem barcos
em Lisboa
na barra e
entram devagar
na lâmina da página
comigo a olhar
a ossatura do poema
a escrever-se no seu
máximo equilíbrio

Um barco no rio
foi o título
que dei ao livro
onde falei desse animal
mnemónico que traz
à superfície os meus olhos

a esse animal do sul
em aresta viva dedico
afinal desde que escrevo
a viva memória do que lembro


Resposta a Drummond

É sempre no meu sempre aquele nunca
é sempre nesse nunca aquele agora
é sempre nesse agora aquele nada

No mesmo nada encontro sempre tudo
mesmo se o mundo é nada sempre assim
mesmo se assim tudo me desperta

e eu me desperto a adormecer no fim
de cada dia de trabalho errado
em cada hora de um amor mal feito

e digo mesmo se este mundo vale
a expectativa de querer ser sempre
aquela esp’rança onde o bem e o mal

se aliam sempre para quem conserva
o sonho ou a fúria de não estar sonhando
Mas novamente dói a dor no peito

e dói no corpo o que nos vai passando
mágoas ou risos ou o grito dado
e logo atirado para um vale escuro

onde não oiçamos a revolta infinda
de vivermos os dias nesta escura selva
a que nem Dante chamou talvez de vida

a que chamamos coisa e porém amamos
Sempre este querer de violência tanta
e esta crença de que o canto estale

e o dia venha porque nós lutamos
para além das forças que supomos nossas
para além dos sonhos que já não esperamos

para além do verso e do corpo gasto
Sempre este homem que se vai cansando
sempre estes ossos em que equilibramos

esta carne frágil este dia vasto
esta vida feita no que é morte nela
este amor sujeito ao que é sempre efémero

este ódio ao mundo que é amor eterno


CORTEZ, António Carlos. Depois de Dezembro. Lisboa: Licorne, 2010.