sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Três poemas de Nikola Madzirov


Nasce a perfeição

Quero que alguém me fale sobre
a mensagem das águas nos nossos corpos,
sobre o ar de ontem
na cabine telefônica,
sobre os vôos, que apesar de todos
os anjos invisíveis, são cancelados
por causa da má visibilidade.
Sobre o ventilador que chora os ventos tropicais,
sobre o incenso que perfuma mais intensamente
quando se espaira — quero que alguém me fale sobre isso.

Acredito que, quando a perfeição nasce,
todas as formas e verdades
se partem como casca de ovo.

Somente o suspiro das suaves despedidas
pode rasgar a teia de aranha
e a perfeição dos países imaginados
poderá adiar a migração secreta
das almas.

E o que faço eu com o meu corpo imperfeito:
vou e volto, vou e volto,
como uma sandália de plástico sobre as ondas
na orla.


Célere é o século

Célere é o século. Se eu fosse um vento,
eu descascaria as códeas das árvores
e as fachadas dos edifícios nos subúrbios.

Se eu fosse de ouro, esconderiam-me nos porões,
na terra rala e entre brinquedos quebrados.
Os pais me esqueceriam, mas os filhos
lembrariam-se de mim eternamente.

Se eu fosse um cão, eu não teria medo
de refugiados, se eu fosse a lua, eu não
recearia a pena de morte.

Se eu fosse um relógio de parede,
eu ocultaria as fissuras na parede.

Célere é o século. Sobrevivemos aos terremotos mais leves
ao olharmos para o céu e não para a terra.
Abrimos a janela para entrar o ar
dos lugares em que nunca estivemos.
As guerras não existem só porque diariamente alguém
machuca nosso coração. Célere é o século.
Mais alígero do que a palavra.
Se eu estivesse morto, todos acreditariam em mim
quando me calo.


Não sei

Distantes estão as casas com as quais sonho,
distante a voz de minha mãe, que
me chama à ceia, mas corro para os campos de centeio.

Distante estamos como uma bola que erra o gol
e segue para o céu, estamos vivos
como um termômetro, que somente é exato
no momento em que olhamos para ele.

A longínqua realidade me interroga diariamente,
como um viajante desconhecido, que me desperta no meio
do caminho com a pergunta: é este o ônibus certo?
E respondo sim, mas penso: não sei.
Não sei onde estão as cidades de teus antepassados,
as conhecidas doenças e medicamentos
que não possuem a substância da paciência.

Sonho com uma casa na colina de nossa saudade
para contemplar como as ondas do mar desenham
o cardiograma das nossas derrotas e do nosso amor,
como as pessoas acreditam, para não afundar
e caminham para não caírem no esquecimento.

Distantes estão as cabanas onde nos escondemos da chuva
e da dor do veado que morre diante dos olhos do caçador,
mais solitário do que faminto.

O longínquo instante me interroga diariamente,
É esta a janela? É esta a vida?, e eu respondo
sim e na realidade não sei, eu não sei quando
os pássaros começarão a falar sem dizer céu.


* Tradução de Viviane de Santana Paulo. Publicado inicialmente no jornal Rascunho.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Um caderno em homenagem a Drummond




Desde 2010, no Rio de Janeiro, se formou um projeto cultural chamado “Declame para Drummond”; poetas de todo o Brasil são convidados a escrever seus versos para o poeta mineiro e os poemas são distribuídos em lugares inusitados. É verdade que no ano de sua primeira edição a ideia centrou-se apenas na cidade carioca, mas, agora em 2012, sua idealizadora, Marina Mara, expande a ideia para todos os lugares que queiram participar.

Os que se juntam à ideia têm que, de algum modo distribuir entre 10 e 110 poemas. Como o editor do caderno-revista 7faces está entre os que abraçaram a causa, ficou decidido que, do material enviado, parte será transformada em marca textos e a outra grande parte passará por uma seleção e será reunida numa edição especial do periódico.

Ainda não está definida a quantidade de poemas que irá para a edição, nem quais os critérios que serão utilizados para a triagem dos textos e nem quando ela será publicada. Pelo andar das coisas, em janeiro de 2013 vem a lume o 6º número, logo, o número em homenagem a Drummond pode sair em seguida, até maio, já que no meio do ano confirma-se a 7ª edição e em setembro a edição especial sobre o poeta Leontino Filho.

Saiba mais sobre o projeto "Declame para Drummond" acessando <aqui>.  E, por falar em 6ª edição, a chamada está aberta até o próximo dia 30/10, leia mais <aqui>.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Dois poemas de Konstantinos Kaváfis por Haroldo de Campos



O CORTEJO DE DIONISIO

Dâmon, o artífice (não há outro tão apto
lá no Peloponeso), em mármore de Paros
esculpe o cortejo de Dionisio. O deus, glorioso,
excelso, vai adiante, no andar vigoroso.
O Frenesi atrás dele, e a Ebriez a seu lado,
vertendo vinho aos sátiros, de um grande vaso,
uma ânfora estefânia, que de hera se enguirlanda.
Junto deles está, enlanguescendo em branda
moleza, Vinho-mel, as meninas dos olhos
quase ocultas, a meio, como num sonho hipnótico.
E Molpos-Melodia e Harmonia-Hedimélia
a seguir vão cantando, e Kómos, a Comédia,
hílare, jamais deixa extinguir-se essa tocha
que porta na mão, ao caminhar, lampadófora.
Depois vem Teletê – sério Mistério. O artífice
Dâmon fez essas coisas belas. Não resiste,
porém, uma e outra vez, que o veloz pensamento
lhe derive, com ânsia, para o pagamento
que lhe há de dar o rei, senhor de Siracusa:
três talentos, bom prêmio, pela obra conclusa.
Dâmon o meterá em meio a seu tesouro
e viverá na cômoda opulência do ouro.
Até fazer política ele pode agora
– que bom! – e afinal há de ter voz e vez na ágora.


ÍTACA

Quando, de volta, viajares para Ítaca,
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Ciclopes,
ao colérico Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões, nem Ciclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de ti.

Roga que tua rota seja longa,
que, múltiplas, se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas:
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.

Detém-te nas cidades do Egito – nas muitas cidades –
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,
sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.

Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.


Konstantinos Kaváfis nasceu em 29 de abril de 1863 em Alexandria, Egito – cidade onde passou grande parte de sua vida até sua morte em 1933, também num 29 de abril. Nesse período esteve sete anos para estudos na Inglaterra. Escreveu os seus primeiros poemas – em inglês, francês e grego. Trabalhou na Bolsa de Valores do Egito. Os 154 poemas que escreveu durante a vida compõem sua obra nunca foram publicados em livro – circularam em folhetos e sempre foram retrabalhados pelo poeta durante toda vida. Só em 1935, parte desses textos foi reunida numa editio princeps.