domingo, 23 de dezembro de 2012

Três poemas de Lêdo Ivo


Acontecimento do soneto

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.


Os peixes

Os peixes estão no lago, os dardos escondidos.
Entre as pedras e o lodo eles avançam
túrgidos como o amor.

Venha a mão do desejo turvar a água clara
e eles serão o amor, o sol que penetra em gretas
                                                                   [nupciais,
as espadas cobertas de saliva.


O cavalo 

No campo matinal
um cavalo assediado
pelo zumbir das moscas
mastiga avidamente,
o capim do universo.
Os insetos volteiam
no anel azul do mundo
- esfera sem passado
nos ares momentâneos.
Não há mitologia
espalhada na relva
que é verde, sem caminhos,
longe das longes terras.
E o cavalo sobrado
da inenarrável guerra
e da paz defendida
à sombra das espadas
mata a fome no campo
onde não jazem mortos
nem retroam clarins.
Sua crina estremece.
E seus cascos escarvam
a plácida planície
coberta pelos pássaros.
Já sem fome, relincha
para os céus que não guardam
as fanfarras e flâmulas
e a fumaça da História,
e se muda em estátua.

•••
Lêdo Ivo nasceu em Maceió, Alagoas, em 1924. Apesar de melhor conhecido pela poesia, gênero que melhor praticou ao longo de sua vida de escritor, também escreveu prosa, com incursões pelo romance, pelo conto, crônica e ensaio. Autor de vasta obra, foi membro da Academia Brasileira de Letras e premiado reiteradas vezes. Dentre os títulos que publicou, destacam-se As imaginações, seu primeiro livro, Ode e elegia, Acontecimentos do soneto, Ode ao crepúsculo, Cântico, Ode equatorial, Linguagem, Um brasileiro em Paris, Magias, Estação central, Finisterra, O soldado raso, A noite misteriosa, Calabar, Ninho de cobras, Curral de peixe, O rumor da noite e Plenilúnio. Em 2004, toda sua obra poética foi reunida em Poesia completa 1940-2004 (Topbooks). O escritor morreu no dia 23 de dezembro de 2012, em Sevilha, na Espanha. 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Sem homenagem a Drummond, mas um 2013 agitado

Dora Ferreira da Silva.

Em princípios de outubro passado confessamos por aqui da publicação de um caderno extra da 7faces com poemas para Carlos Drummond de Andrade; a ideia havia já sido acordada em conversa por mensagem eletrônica entre o editor do caderno, Pedro Fernandes, e a mentora do Projeto Declame para Drummond, Marina Mara. De uma hora para outra, Mara disse não ter mais interesse em levar a ideia adiante por ter recebido proposta editorial para uma publicação de antologia envolvendo os 110 poetas que participaram do projeto. Fica aqui o nosso registro de um plano falhado. Em 2013 não teremos nenhum caderno em homenagem a Drummond.

Fora esse feio imprevisto, noticiamos o que esperamos, de certo, para o ano vindoura. Já em janeiro chegará on-line a 6ª edição do caderno-revista 7faces. Já selecionamos os nomes que estarão na edição e iniciamos os trabalhos de editoração do material: nesta leva virão poetas do Brasil, Moçambique e Portugal. O número é fruto de uma parceria com o Instituto Moreira Salles que dispôs alguns materiais do espólio de Dora Ferreira da Silva; a poeta paulista será a homenageada na edição em questão.

A 7ª edição começará a receber materiais (poesia e artes plásticas) conforme está redigido no regulamento a partir de 1º de fevereiro. Esta edição será publicada entre julho e agosto de 2013, conforme o calendário de edições semestrais do periódico.

Para setembro, chegara mais um número especial – misto poesia, misto ensaio acadêmico – nos moldes do que foi a edição Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago, publicada em julho de 2011, dedicado ao poeta Leontino Filho. Neste ano que finda, a obra enigma de sua carreira literária completa 25 anos de sua primeira edição, Cidade íntima. Ainda não temos um nome oficial para a ideia, mas já fechamos uma equipe de convidados e, passado o lançamento da primeira edição, divulgaremos um regulamento específico para receber ensaios acadêmicos de quaisquer partes do Brasil com leituras para a obra do poeta.

Como se vê, teremos um agitado 2013. Fica, então, desde já, os cumprimentos a todos com votos de bom Natal e um vigoroso 2013.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Três poemas de António Ramos Rosa


O NOSSO OLHAR

O nosso olhar não tem fronteiras ou estações
não é uma arma que dispara um tiro
imediatamente o espaço é a inocência do seu dom
ao sol e na sombra a sua projecção imperceptível

Para uma longínqua estrela uma árvore ou uma flor no chão
não necessita de uma medida as distâncias equivalem-se
o olhar não nos pertence como um instrumento ou um meio
a sua límpida visão vem de uma obscura esfera
e no seu átrio o ponto de partida não é o ponto
mas a abertura imediata que nos projecta no espaço
imperceptivelmente numa visão de um instante
e o visível é a evidência do real
de um fascínio de qualidades puras
de surpresa em surpresa de cores formas e tons
respirados pelo corpo na sua mais ampla latitude

* Revista Mealibra, n. 3, outono de 2008.


NO CENTRO DO MUNDO

Oscilante geometria tranquila
presença suficiente do ínfimo e do amplo
No centro do tempo não há tempo

Tranquilidade para ir ao encontro de
Estou dentro estou aberto habito
um limpo rosto de desconhecida frescura

Ramagens dispersão de nuvens indícios ténues

Sou uma linguagem límpida com o vento
Bebo nas múltiplas nascentes
do espaço puro
Acendo-me e apago-me e é a claridade que muda
Tranquilidade das ramagens crepitação de brasas

Durmo silencioso e mais desperto do que nunca
Sou o ar que se dissipa no ar
Como me perdi quem sou as interrogações cessaram

Estou dentro e fora na densidade subtil
Não há aqui imagens extravagantes rumores estranhos
Tudo se desenrola na lúcida amplitude tranquila
As palavras sucedem-se como vagarosas nuvens
O dia é límpido e lê-se como um livro aberto


UM POEMA É SEMPRE ESCRITO NUMA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico

* Do blog do autor



António Ramos Rosa nasceu em Faro no dia 17 de outubro de 1924. Escreveu poesia e prosa (crítica literária); do primeiro gênero deixou extensa obra literária que mereceu o reconhecimento pela variedade de premiações recebidas, dentre os quais pode-se destacar o Prêmio Nacional de Poesia, recusado pelo autor, o Prêmio PEN Clube Português de Poesia e o Grande Prêmio Sophia de Mello Breyner Andresen. Sua obra de estreia foi O grito claro, em 1958  e a última em vida Numa folha, leve e livre, em 2013. O poeta morreu nesse mesmo ano em 23 de setembro.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Dois poemas de Alexandre O’Neill





Cão

Cão passageiro,
cão estrito, cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!


***


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O’Neill nasceu em Lisboa a 19 de dezembro de 1924, cidade onde passou toda a vida até o dia 21 de agosto de 1986. Colaborou largamente com a imprensa portuguesa, destacando-se suas colunas no Diário de Lisboa, em A Capital e no Jornal de Letras. Sua estreia acontece ainda em 1948 com A ampola miraculosa. Fortemente marcado pelas expressões do surrealismo se fez um dos importantes nomes dessa vanguarda em Portugal. Publicou ainda obras como No reino da Dinamarca (1958), Poemas com endereço (1962), Feira cabisbaixa (1965), A saca de orelhas (1979), entre outras. Escreveu prosa, da qual se destaca Uma coisa em forma de assim (1980); traduziu autores como Maiakóvski, Bertolt Brecht, Alfred Jarry; e compôs roteiros para o cinema e a televisão. 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

4 poemas de Rodrigo de Souza Leão


meu pai que não está na foto

comi distância nas pálpebras
fechadas de minha razão
pude sentir a minha Loucura
sempre sorrindo de dentadura

oro aos sãos que me querem
tateando o Horizonte dentro
daquela noite eterna
em que me deitei em mim

pra sempre quis estrelas
quem sabe irei ser um dia
aquela que adiante guiará
meu pai no mar da poesia



toda a vida em um segundo

morrendo a cada
dez minutos uma vez

o círculo se fecha
e cada vez mais

o que vai indo vai
pra nunca mais

o que fica é o futuro
uma criança na foto

por que nenhuma
mãe guardou

nossas fotos
quando adultos

  
o piolho

o piolho numa folha de papel é um ponto (ponto).
na cabeça é uma serra-elétrica.

a esteira é ergométrica e o piolho anda quando eu ando.
sinto falta dos piolhos da infância e corto o cabelo curto.

estou sempre em curto. Curto isso.
estes seres abjetos (objetos abjetos) têm que viver (interrogação)?

talvez seja um deles ou venha a ser já que não faço nada.
como uma empada e arroto Coca. Deus é um piolho na toca.



bandeira vermelha

o sono eterno da pedra
as falésias surfando
o mar de cicatrizes

à cata está o poeta
de alguma imagem rara
ou de alguma metáfora nua

na ressaca da prudência
alguns ficam nas pranchas
carrancas com medo

castelos de areia
crianças à milanesa
o céu maior que tudo

e à maneira do sol
espero o mar crescer
se encher de sudoeste


......................
Poemas da página oficial de Rodrigo de Souza Leão.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Três poemas de Nicanor Parra


QUE É POESIA

A fundação do ser x a palavra
Poesia és tu
Tudo o que se move é poesia
O que não muda de lugar é prosa

Mas que é poesia
Tudo o que nos une é poesia
Só a prosa pode nos separar

Sim mas que é poesia
Vida em palavras
Um enigma que se nega a ser decifrado x os professores
Um pouco de verdade e uma aspirina

Antipoesia és tu


O HOMEM IMAGINÁRIO

O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginarias
à beira de um rio imaginário

Das paredes que são imaginários
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis rachaduras imaginárias
que representa feitos imaginários
acontecidos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários

Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e se põe por sobre a varanda imaginária
a olhar a paisagem imaginária
que consiste num vale imaginário
rodeado por colinas imaginárias

Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário

E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que lhe deu seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar

o coração do homem imaginário

* Traduções de Pedro Fernandes de O. Neto


MULHERES

A mulher impossível,
a mulher de dois metros de estatura,
a senhora de mármore de Carrara
que não fuma nem bebe,
a mulher que não fica nua
por temor de engravidar
a vestal intocável
que não quer ser mãe de família,
a mulher que respira pela boca,
a mulher que caminha
virgem para a câmara nupcial
porém que reage como homem,
a que se desnudou por simpatia
por encantar-se com musica clássica,
a ruiva que ficou de bruços,
a que só se entrega por amor,
a donzela que enxerga com um só olho,
a que apenas se deixa possuir
no divã, à borda do abismo,
a que odeia os órgãos sexuais,
a que casa somente com um cão,
a mulher que se faz de adormecida
(o marido a ilumina com um fósforo),
a mulher que se entrega porque sim
porque a solidão, porque o esquecimento...
a que chegou moça à velhice,
a professora míope,
a secretária de óculos escuros,
a senhorita pálida de lentes
(ela não quer nada com o falo),
todas estas valkírias
todas estas matronas respeitáveis
com seus lábios maiores ou menores
terminarão tirando-me do juízo.

* Tradução de Albino M. 


Nicanor Parra nasceu em San Fabián, em 5 de setembro de 1914. Em 1933, ingressou no Instituto Pedagógico da Universidade do Chile, onde se formou em Matemática e Física. Em 1943, embarcou para os Estados Unidos para fazer uma especialização no Instituto de Educação Internacional. Revolucionou a literatura com sua antipoesia, que mudou a forma de conceber a literatura e a arte. Escreveu, dentre outras obras Hojas de Parra, Poemas y antipoemas e Versos de salón. Sua última obra publicada foi Antiprosas, em 2011. O poeta morreu no dia 23 de janeiro de 2018. 




segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Três poemas de Emily Dickinson



Fazer a Toalete – após a Morte
Frio deixar na Toalete
O único Sabor que ela nos dava –
É difícil, embora –

Seja mais fácil – que fazer as Tranças –
E um ar feliz dar ao Corpete –
Se o olho que a mimou foi arrancado –
Por Decálogos – fora –

***

A brasa arde e enrubesce –
Ó alma sob as Cinzas
Todo esse tempo e não morreste?
A brasa arde e sorri –

Branda Luz se faz nova
Brilham horas extintas
Próprio do Fogo é a persistência
E Prometeu não viu –

 ***

Por Deus, partiu como um soldado,
O fuzil junto ao peito –
Meu Deus, seja ele o mais valente
Dentre os guerreiros.

Ó Deus, pudesse eu vê-lo ainda
Com dragonas na farda –
Nem temeria o inimigo
Nem as batalhas.

Emily Dickinson nasceu a 10 de dezembro de 1830, em Amherst. De vida reclusa, trabalhou continuamente na construção de uma poesia que só se descobriu em sua grande dimensão depois da sua morte; em vida, poucos textos foram publicados sem alcançar reconhecimento.  Sua obra tem sido organizada em cartas, textos esparsos e poemas; neste gênero somam-se mais de mil textos. A poeta estadunidense morreu no dia 15 de maio de 1886.



*Traduções de José Lira

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O poema de João Cabral de Melo Neto em louvação a Oscar Niemeyer




À Brasília de Oscar Niemeyer 

Eis casas-grandes de engenho, 
horizontais, escancaradas, 
onde se existe em extensão 
e a alma todoaberta se espraia. 

Não se sabe é se o arquiteto 
as quis símbolos ou ginástica: 
símbolos do que chamou Vinicius 
"imensos limites da pátria" 

ou ginástica, para ensinar 
quem for viver naquelas salas 
um deixar-se, um deixar viver 
de alma arejada, não fanática.


João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro de 1920 no Recife. Publicou seu primeiro livro de poemas Pedra do sono em 1942; a partir de então seguiu-se títulos como O engenheiro (1945), O cão sem plumas (1950), O rio (1954), Quaderna (1960), A educação pela pedra (1966), Morte e vida severina e outros poemas em voz alta (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Agreste (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilla andando (1989), entre outros. Morreu no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

4 poemas de Rainer Maria Rilke




a minha vida eu a vivo em círculos crescentes
sobre as coisas, alto no ar.
Não completarei o último, provavelmente,
mesmo assim irei tentar.

Giro à volta de Deus, a torre das idades,
e giro há milênios, tantos...
Não sei ainda o que sou: falcão, tempestade
ou um grande, um grande canto.

*** 

Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
batendo forte à tua porta na noite extensa,
é porque te ouço respirar, da tua presença
sei: estás na sala, sozinho.
se de algo precisares, não há ninguém ali
que possa te trazer um gole d’água sequer.
Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
estou bem perto de ti.

Entre nós há apenas um muro, coisa pouca,
por mero acaso aliás;
bem pode ser que um grito da tua ou minha boca —
e eis que se desfaz
sem só rumor ou ruído.

Com imagens tuas o muro foi construído.

Diante de ti tuas imagens são como nomes.
e quando um dia dentro de mim esteja acesa
a luz com que te conhece minha profundeza,
será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.

E os meus sentidos, que um torpor célere consome,
estão sem pátria, exilados da tua grandeza.

 ***

Tu, obscuridade de onde emana
meu ser, amo-te mais do que à chama
que o mundo reduz
ao círculo da sua luz:
ali dentro, resplandece;
fora dali, ser nenhum a reconhece.

mas na obscuridade tudo se contém:
as formas e as chamas, os animais e eu também,
nela que consorcia
existências e energias —

pode bem ser que uma força sombria
se mova em minhas cercanias.

É às noites que minha alma se confia.

*** 

Obreiros somos — mestre, aprendizes, serventes —
e te construímos, ó grande nave altaneira.
Às vezes chega a nós um peregrino silente;
ei-lo que como um clarão cruza as nossas cem mentes
e trêmulo nos traz alguma nova maneira.

Galgamos andaimes que ao nosso passo estremecem;
maciços os martelos que nossas mãos sustêm;
isso até aflorar-nos a fronte uma hora que se
irisa e fulge como se de tudo soubesse:
como o vento vem do mar, é de ti que ela vem.

ouve-se então um malhar de martelos inúmeros
que, golpe após golpe, pelas montanhas se expande.
só te deixamos quando a noite cai e no escuro
podemos já ver-te os vagos contornos futuros.

Deus, como tu és grande.

Rainer Maria Rilke nasceu a 4 de dezembro de 1875, em Praga, na Boêmia, então Império Austro-Húngaro. Estudou na cidade natal e ainda em Munique e Berlim. Sua estreia na literatura — onde se afirmará um dos poetas de língua alemã mais importante do século XX — acontece em 1894, com Vida e canções. Na viagem pela Rússia, a convite de Lou Andreas-Salomé, adquiriu a inspiração religiosa que modificaria os tons de seus primeiros trabalhos. É desse período Histórias do bom Deus. A estes trabalhos, acrescentou ainda O livro das horas (1905), Elegias do Duíno (1923), Sonetos a Orfeu (1923) e Cartas a um jovem poeta (publicação póstuma que se tornou uma das mais conhecidas no mundo, de 1929). Rilke morreu a 29 de dezembro de 1926, em Montreux, na Suíça. 



* Traduções de José Paulo Paes.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Três poemas de Décio Pignatari




EUPOEMA

O lugar onde eu nasci nasceu-me
num interstício de marfim,
entre a clareza do início
e a celeuma do fim.

Eu jamais soube ler: meu olhar
de errata a penas deslinda as feias
fauces dos grifos e se refrata:
onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve,
mas sim o que escrevo:
Algures Alguém
são ecos do enlevo.


JANEIRO/FEVEREIRO
Calendário Philips 1980

Nem só a cav
idade da boca

Nem só a língua

Nem só os dentes
e os lábios

fazem a língua

Ouça
as mãos
tecendo a língua
e sua linguagem

É a língua
têxtil

O texto
que sai das
mãos
sem palavras
 
 
POEMA

Tosco dizer de coisas fluidas,
Gume de rocha rasga o vento:
Semanas tantas de existir
E de viver -um só momento.

Prisma empanado da retina
Que acalanta mundos sem prumo,
A luz que o fere perde o rumo,
Aclara a linfa submarina:

Prédios mergulham ramos de cimento,
Neons fazem dos olhos coágulos de seixos,
E esquinas lanham flancos desse rio sem peixes
De que sou fonte e náufrago no inteiro.
 

Décio Pignatari nasceu a 20 de agosto de 1927 em Jundiaí. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo. Sua estreia na literatura — onde se firmou como poeta, ensaísta, ficcionista e tradutor — acontece na Revista de Novíssimos juntamente com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, com quais fundará mais tarde a poesia concreta e várias outras atividades criativas como a Grupo Noigandres. Na poesia publicou, entre outros, O carrossel (1950), Rumo a Nausicaa (1952), Organismo (1960) e Exercício findo (1968). Morreu em São Paulo a 2 de dezembro de 2012.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Dois poemas de Manuel António Pina




ARTE POÉTICA

Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.

Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melodia e de respeito.

E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?


TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão, 
principalmente as que estiveram muito perto, 
como uma respiração, 
e não reconheci, 
ou desistiram e 
partiram para sempre, 
deixando no poema uma espécie de mágoa 
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me; 
as que calei por serem muito cedo, 
e as que calei por serem muito tarde, 
e agora, sem tempo, me ardem; 
as que troquei por outras (como poderei 
esquecê-las desprendendo-se longamente de 
mim?); 
as que perdi, verbos e 
substantivos de que 
por um momento foi feito o mundo 
e se foram levando o mundo. 
E também aquelas que ficaram, 
por cansaço, por inércia, por acaso, 
e com quem agora, como velhos amantes sem 
desejo, desfio memórias, 
as minhas últimas palavras.


Manuel António Pina nasceu no dia 18 de novembro de 1943, em Sabugal, cidade pertencente à região da Beira Alta, Portugal. Formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, foi advogado, jornalista, poeta e escritor. Publicou 17 livros de poesia, de Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (1974); até Todas as palavras: poesia reunida (2012). Em 2011, recebeu o Prêmio Camões. Morreu em 2012, na cidade do Porto.