domingo, 23 de dezembro de 2012

Três poemas de Lêdo Ivo


Acontecimento do soneto

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.


Os peixes

Os peixes estão no lago, os dardos escondidos.
Entre as pedras e o lodo eles avançam
túrgidos como o amor.

Venha a mão do desejo turvar a água clara
e eles serão o amor, o sol que penetra em gretas
                                                                   [nupciais,
as espadas cobertas de saliva.


O cavalo 

No campo matinal
um cavalo assediado
pelo zumbir das moscas
mastiga avidamente,
o capim do universo.
Os insetos volteiam
no anel azul do mundo
- esfera sem passado
nos ares momentâneos.
Não há mitologia
espalhada na relva
que é verde, sem caminhos,
longe das longes terras.
E o cavalo sobrado
da inenarrável guerra
e da paz defendida
à sombra das espadas
mata a fome no campo
onde não jazem mortos
nem retroam clarins.
Sua crina estremece.
E seus cascos escarvam
a plácida planície
coberta pelos pássaros.
Já sem fome, relincha
para os céus que não guardam
as fanfarras e flâmulas
e a fumaça da História,
e se muda em estátua.

•••
Lêdo Ivo nasceu em Maceió, Alagoas, em 1924. Apesar de melhor conhecido pela poesia, gênero que melhor praticou ao longo de sua vida de escritor, também escreveu prosa, com incursões pelo romance, pelo conto, crônica e ensaio. Autor de vasta obra, foi membro da Academia Brasileira de Letras e premiado reiteradas vezes. Dentre os títulos que publicou, destacam-se As imaginações, seu primeiro livro, Ode e elegia, Acontecimentos do soneto, Ode ao crepúsculo, Cântico, Ode equatorial, Linguagem, Um brasileiro em Paris, Magias, Estação central, Finisterra, O soldado raso, A noite misteriosa, Calabar, Ninho de cobras, Curral de peixe, O rumor da noite e Plenilúnio. Em 2004, toda sua obra poética foi reunida em Poesia completa 1940-2004 (Topbooks). O escritor morreu no dia 23 de dezembro de 2012, em Sevilha, na Espanha.