sábado, 9 de fevereiro de 2013

Um poema de Carlos Drummond de Andrade



O pagamento

Quando é que sai o pagamento?
O pagamento está difícil.

Quando se fará a folha
e se construirá a máquina
que fará o cálculo e os descontos?

E quando se fabricará o dinheiro,
espécie nova de dinheiro,
para fazer o pagamento?
Quem receberá o primeiro lote,
quem no segundo e no terceiro,
se antes de tudo vier a morte
poupar serviço ao tesoureiro?

O pagamento está difícil.

A espera, quem é que paga a espera
e os extraordinários da esperança
e os serviços (esquecidos) dos pais
e dos avós e dos antiquérrimos?

Que contador porá em dia as contas
e qual será o seu critério?
Irá medir produtividade,
assiduidade, pequenos méritos,
pequenas faltas, imperfeitos
serões, tarefas de má vontade?

Só sairá pagamento
depois do inquérito concluído?

O pagamento está difícil.

Nem um simples apontamento
foi tomado, não há controle,
direção?
Ou não houve serviço nunca
e ninguém jamais se empregou
nem patrões existiram nem
saiu produção de nada?
Não houve encomenda de nada
na fábrica inexistente
e ninguém podia tomar nota
alguma em nenhum escritório ?
Não cabe pois reclamar
nem salários nem horas extras
nem demora ou juros de mora?

O pagamento está difícil.

Difícil é o pagamento
ou conceber a estranha folha
que nunca sai
e saindo, não se registra
e registrada, não se paga
e pagando, não vale a cédula
e valendo, o vento a carrega
e carregando, foi bem feito
se não havia o que pagar?

O pagamento está difícil
porque não há com que pagar
o que não era de ser pago

e contudo está-se cobrando?
Cobrando com unhas, gritos,
com bater pé, com suplicar,
exigir latir bramir
chorar,
de lei na mão, uma lei feita
só de parágrafos riscados,
outra vez escritos riscados
etc.?

O pagamento está difícil
ou já foi feito antes de tudo
há 40 anos, tão à sorrelfa
que ninguém lembra ou se acaso lembra
é que o dinheiro era falso
era marcado era maldito
era por todos refugado?

O pagamento está difícil?
Depois de tão anunciado,
solenemente  prometido,
foge o caixa, são massacrados
os condutores do dinheiro,
tudo é furtado num segundo
e o próprio assalto é simulado?

Some a ideia de pagamento
de tal sorte que ninguém mais
lhe conhece o significado
e os que reclamam não reclamam
com intenção de receber
mas por força do triste hábito?
e tornam-se mudos
de voz e gesto

e se esquecem todos
de reclamar e de adiar
e de negar?

Então, de todos olvidado
não mais pensado ou referido
nem na lousa dos dicionários
o pagamento – afinal – saiu.
Para cada um e seu irmão,
seu amigo, seu inimigo,
seu desconhecido, seu antípoda,
seu ascendente e descendente,
seu curió demissionário, seu gato escaldado, seu cachorro caduco,
suas plantinhas de vaso (sem sol) na janela,
seu coração
de válvulas paradas,
seu coração
entranhado de cisco,
seu coração
já sem forma de
coração.

O pagamento total geral
saiu! saiu!
pagamento sem escrita
sem cifrão
sem limitação
sem explicação
sem razão
sem código
sem termo
saiu.

Não havia quem recebesse.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Estreou na literatura em 1930 com a publicação de Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais da literatura brasileira como Sentimento do mundoA rosa do povo e Claro enigma. Morreu no Rio de Janeiro em 1987.