domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cinco poemas de David Mourão-Ferreira



Não me fales agora de outras terras,
de outros céus, de outro tecto, de outra cama.
Continua a contar os meus orgasmos,
já que essa aritmética te exalta;
a percutir de cânticos três grutas,
de gôndola sulcando todas elas;
a trejurar que não, que não, que nunca
assim, nem quase assim, com ninguém mais.
Nasces e morres, morres e renasces:
como hás-de te lembrar de tantas vidas?

Quero, não quero, já não sei se quero
esses frutos do trópico, esse cálido
país de que tu falas. É tão triste
o modo como dizes que talvez.

*

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.


*

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!


Ternura 

Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada

Olho a roupa no chão que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!


A secreta viagem

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter?  Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
 Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

David Mourão-Ferreira nasceu a 24 de fevereiro de 1927, em Lisboa. Sua atividade literária se desenvolve desde cedo com a publicação de A viagem, em 1950. Este livro de poesia inaugura uma extensa obra nesse gênero, mas Mourão-Ferreira também publicou prosa (novela, conto, romance e ensaio). Do romance, por exemplo, destaca-se com Um amor feliz, livro que lhe valeu vários e importantes prêmios, como o Grande Prêmio de Romance e Novela APE/ DGLB, o Prêmio Literário Município de Lisboa e o Prêmio D. Dinis — todos pela publicação da obra, em 1986. Na poesia destaca-se ainda por Tempestade de verão (1954), Os quatro cantos do tempo (1958), Lira de bolso (1969), Matura idade (1973), As lições do fogo (1976), Os ramos e os remos (1985), Música de cama (1994), entre outros. Morreu a 16 de junho de 1996.