quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Dois poemas do primeiro livro de Augusto de Campos




O VIVO

Não queiras ser mais vivo do que és morto.
As sempre-vivas morrem diariamente
Pisadas por teus pés enquanto nasces.
Não queiras ser mais morto do que és vivo.
As mortas-vivas rompem as mortalhas
Miram-se umas nas outras e retornam
(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!)
Ó vivo-morto que escarnecem as paredes,
Queres ouvir e falas.
Queres morrer e dormes.
Há muito que as espadas
Te atravessando lentamente lado a lado
Partiram tua voz. Sorris
Queres morrer e morres.


CANTO DO HOMEM ENTRE PAREDES

As paredes suportam meus pulsos de carne.
As paredes se encaram.
As paredes indagam seus rostos à cal
E me riem perdido além do labirinto.
A luz sobre a cabeça, os olhos entre os dedos,
O caminho dos pés no caminho nos pés:
Entre o jarro de flores e a mesa perdido.
E as paredes são uivos mais fortes que os meus.
Fui eu quem as fechou? Se fecharam sozinhas?
Sabem que eu sei abri-las. Ignoro que sei.
Ao me sonhar caminho vi que elas e não eu,
Que tenho pés, caminham.
As estantes e os quadros se erguem já como a hera
Mais espessos que a hera.
Algo que a luz chamou poeira e eu ouro, e teias
Chamou e eu chamei rios
Acorda o compromisso entre as portas e a vida.
As paredes não param. Caminham sobre mim.
Sonham que eu hei de abri-las. Ignoro mas sei.

Augusto de Campos nasceu a 14 de fevereiro de 1931 em São Paulo. Sua estreia na literatura acontece em 1951 com o livro O rei menos o reino. Depois forma parte com o irmão Haroldo de Campos da revista literária Noigandres, formando um grupo que, com Décio Pignatari, resultaria no movimento vanguardista Poesia Concreta. Viva vaia, seu trabalho mais conhecido, valeu o Prêmio Jabuti de 1979. Entre seus livros estão ainda Despoesia (1994) e Não (2003).



quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O cronópio que (também) era poeta



Os amantes

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?  
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos. 


Os deuses

Os deuses caminham entre coisas pisoteadas, segurando
as pontas dos seus mantos com gesto de asco.
Entre gatos podres, entre larvas abertas e acordeões,
sentindo nas sandálias a umidade dos farrapos corrompidos,
os vômitos do tempo.

Em seu céu despido já não moram, lançados
fora de si por uma dor, um sonho turvo,
estão feridos de pesadelo e lama, parando
para recontar seus mortos, as nuvens ao contrário,
os cães de língua quebrada,

a espreitar invejosos o abismo
onde ratos eretos disputam chiando
pedaços de bandeiras.


Viagem infinita

para quem com seu incêndio te ilumina,
cósmico caracol de azul sonoro,
branco que vibra um címbalo de ouro,
último trecho da lâmina fina.

a mão que te busca na penumbra
se detém na tépida encruzilhada
onde musgo e coral guardam a entrada
e um rio de pirilampos te alumbra,

sim, portulano, da esmeralda o fulgor,
sirte e fanal nua mesma bandeja
quando a boca navegante beija
a poça mais profunda do teu dorso,

suave canibalismo que devora
sua presa que o dança no abismo ermo,
oh, labirinto exato de si mesmo
onde o pavor das delícias mora

água para a sede de quem te viaja
enquanto a luz que junto ao leito vela
desce às tuas coxas sua úmida gazela
e por fim a trêmula flor escacha

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Seis poemas eróticos de Bertolt Brecht



Do prazer dos homens casados

Mulheres minhas, infiéis, adoro amá-las:
Vêem meu olho em sua pelve embutido
E têm de encobrir o ventre já enchido
(Como dá gozo assim observá-las).

Na boca ainda o sabor do outro homem
Ela é forçada a dar-me tesão viva
Com essa boca a rir para mim lasciva
Outro caralho ainda no frio abdómen!

Enquanto a contemplo, quieto e alheio
Do prato do seu gozo comendo os restos
Esgana no peito o sexo, com seus gestos.

Ao escrever os versos, ainda eu estava cheio!
(O gozo ia eu pagar de forma extrema
Se as amantes lessem este poema.)


Soprava o vento pela fresta 

Soprava o vento pela fresta
A menina comia nêspera
Antes de dar em segredo
O níveo corpo ao folguedo:

Mas antes provou ter tacto
Pois só o queria nu no acto
Um corpo bom como um figo
Não se vai foder vestido.

Para ela em tempos de ais
Nunca o gozo era demais.
Lavava-se bem depois:
Nunca o carro antes dos bois.


Maria sejas louvada 

Maria sejas louvada
Como és tão apertada
Uma virgindade assim
É coisa demais p'ra mim.

Seja como for o sémen
Sempre o derramo expedito:
Ao fim dum tempo infinito
Muito antes do amen.

Maria sejas louvada
Tua virgindade encruada
'Inda me pões fora de mim.  
Porque és tão fiel assim?

Por que devo eu, que dialho
Só porque esperaste tanto
Logo eu, o teu encanto
Em vez doutro ter trabalho? 


Reivindicação da arte 

A boa, que ao seu amor nada nega
E se lhe entrega com antecipação
Saiba: que não é boa vontade não
Mas talento, o que ele deseja na esfrega.

Mesmo se à velocidade do som
Do sou-tua dela à cópula chega
Não é pressa que o botão dele carrega
Quando às bolas seminais dá vazão.

Se é o amor que primeiro atiça o fogo
Precisa ela depois,
Para Inverno amparado
De ser dona ainda de um traseiro dotado.
De facto, mais que o fervor no olhar
(Também faz falta) um truque há que usar:
Coxas soberbas, em soberbo jogo.


Ula de amor 

Mas, menina, vai com calma
Mais sedução nesse grasne:
Carnalmente eu amo a alma
E com alma eu amo a carne.

Faminto, me queria eu cheio
Não morra o cio com pudor
Amo virtude com traseiro
E no traseiro virtude pôr.

Muita menina sentiu perigo
Desde que o deus no cisne entrou
Foi com gosto ela ao castigo:
O canto do cisne ele não perdoou


O uso das palavras obscenas

Desmedido eu que vivo com medida
Amigos, deixai-me que vos explique
Com grosseiras palavras vos fustigue
Como se aos milhares fossem nesta vida!

Há palavras que a foder dão euforia:
Para o fodedor, foda é palavra louca
E se a palavra traz sempre na boca
Qualquer colchão furado o alivia.

O puro fodilhão é de enforcar!
Se ela o der até se esvaziar:
Bem. Maré não lava o que a arvore retém!

Só não façam lavagem ao juízo!
Do homem a arte é: foder e pensar.

(Mas o luxo do homem é: o riso). 

Bertolt Brecht nasceu a 10 de fevereiro de 1898, em Augsburg, Alemanha. Para estudar medicina, instala-se em Munique e nesta cidade começa sua carreira como dramaturgo; a peça Baal estreia em 1917. A carreira no teatro ampliou-se com novos trabalhos, sempre premiados. Depois se casar com a atriz Helene Weigel, muda-se para Berlim, onde trabalha no Deutsches Theater até 1926. É neste ano que estreia na poesia com Manual de devoção de Bertolt Brecht. O levante do fascismo obriga-o a um longo périplo pelo seu país e fora dele: Tchecoslováquia,  Áustria, Suíça, França, Dinamarca, Suécia, Finlândia, União Soviética e Estados Unidos, onde será um dos perseguidos pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, no nascer dos anos de macartismo; é quando retorna a Berlim Oriental depois de ter sua permanência vetada na outra parte da cidade. Morreu a 14 de agosto de 1956. 

* Tradução de Aires Graça

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Dois poemas de Hilda Hilst


PRELÚDIOS-INTENSOS PARA OS DESMEMORIADOS DO AMOR

I
Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.
Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.
Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II
Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.
Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.
Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.

III
Contente. Contente do instante
Da ressurreição, das insônias heróicas
Contente da assombrada canção
Que no meu peito agora se entrelaça.
Sabes? O fogo iluminou a casa.
E sobre a claridade do capim
Um expandir-se de asa, um trinado
Uma garganta aguda, vitoriosa.
Desde sempre em mim. Desde
Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo
Nas ermas biografias, neste adro solar
No meu mudo momento
Desde sempre, amor, redescoberto em mim.

IV
Que boca há de roer o tempo? Que rosto
Há de chegar depois do meu? Quantas vezes
O tule do meu sopro há de pousar
Sobre a brancura fremente do teu dorso?
Atravessaremos juntos as grandes espirais
A artéria estendida do silêncio, o vão
O patamar do tempo?
Quantas vezezs dirás: vida, vésper, magna-marinha
E quantas vezes direi: és meu. E as distendidas
Tardes, as largas luas, as madrugadas agônicas
Sem poder tocar-te. Quantas vezes, amor
Uma nova vertente há de nascer em ti
E quantas vezes em mim há de morrer.





POEMA V

a Federico García Lorca


Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
que bebi na tua boca a fúria de umas águas
eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah! Se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
e cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.

Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
a tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas se está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?

“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”

E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
azuis, braços e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.



Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930. Estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo.  Publicou seu primeiro livro em 1950, Presságio e, logo no ano seguinte, Balada de Alzira. Na década posterior trocou a badalada vida urbana pela tranquilidade na fazenda da mãe, São José, próxima a campinas, onde construiu a casa do Sol. Escreveu teatro e ficção a partir de 1970. Dentre eles se destacam O caderno rosa de Lori Lamby, Cartas de um sedutor e Rútilo nada. Morreu em 2004.  


Dois poemas de Paul Auster



NOITES BRANCAS

Ninguém aqui,
e o corpo diz: tudo que se diga
não se deve dizer. Mas ninguém
também é corpo, e o que diz o corpo
ninguém escuta
além de ti.

Neve e noite. A iteração
de um assassinato
entre as árvores. A pena
corre pela terra: não sabe mais
o que há de ser, e a mão que a sustém
sumiu.

Mesmo assim, escreve.
Escreve: no começo,
entre as árvores, um corpo vem andando
da noite. Escreve:
o branco do corpo
é da cor da terra. É a terra
e a terra escreve: tudo
é da cor do silêncio.

Não estou mais aqui. Jamais disse
o que dizes
que disse. E, no entanto, o corpo é um lugar
onde nada more. E a noite toda,
dentre o silêncio das árvores, tu sabes
que minha voz
vem andando para ti.


1.
De solidão, ele recomeça -

como se fosse a última vez
que respira,

e portanto seja agora

que respira pela primeira vez
além das garras
do singular.

Está vivo, e portanto é nada
além do que se afoga no insondável poço
de seu olho,

e o que vê
é tudo o que não é: uma cidade

do indecifrado
evento,

e portanto uma língua de pedras,
já que sabe que pelo todo da vida
uma pedra
abrirá caminho a outra pedra
para erguer um muro

e que todas essas pedras
formarão a suma monstruosa

dos particulares.

Paul Auster nasceu a 3 de fevereiro de 1947, em Newark. Reconhecido entre os mais importantes romancistas do seu tempo, sua incursão pela literatura, entretanto, começou pela poesia. Toda a produção neste gênero foi reunida em Todos os poemas.


* Tradução de Caetano W. Galindo.