domingo, 30 de março de 2014

Três poemas de Octavio Paz



IRMANDADE

Homenagem a Claudio Ptolomeo
Sou homem: duro pouco
E é enorme a noite.
Mas olho para cima:
As estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo:
Também fui escrito
E neste mesmo instante
Alguém me soletra.


EPITÁFIO PARA UM POETA

Quis cantar, cantar
para esquecer
sua vida verdadeira de mentiras
e recordar
sua mentirosa vida de verdades.


COLINA DOS ASTROS

Aqui os antigos bebiam o fogo
Aqui o fogo inventava o mundo
Ao meio dia
As pedras abrem-se como frutos
A água abre as pestanas
E a luz desliza pela pele do dia
Gota imensa onde o tempo se espelha
E sacia



Octavio Paz nasceu em 1914 na Cidade do México, filho de um advogado com papel importante na revolução Emiliano Zapata e neto de um romancista de sucesso. Em criança ficou com a família dois anos nos Estados Unidos; de volta ao país natal, passou a se interessar por poesia. Tornou-se assíduo leitor de Federico García Lorca, Rafael Alberti, Jorge Guillén, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda. Publicou seu primeiro livro de poesia aos dezenove anos. Abandonou o curso de Direito; foi professor para os camponeses em Yacatán, no sul do México – condição que favoreceu a poesia de Entre la piedra y la flor. Passou curto período em Paris, onde deu continuidade as atividades de incendiário contra a Guerra Civil em Espanha; na volta ao seu país fundou as revistas Taller e El Hijo Pródigo. Ganhou o Prêmio Nobel em 1990. Décadas depois viajou aos Estados Unidos, onde travou contato com a poesia de Walt Whitman, Hart Crane, William Carlos William, Ezra Pound e Marianne Moore. Neste país foi professora em várias universidades – Harvard, Texas, Austin, Pensilvania. Escreveu ensaios brilhantes e fundamentais sobre poesia, o caráter nacional mexicano, a poeta Sor Inés Juana de la Cruz, entre outros. Criou ainda outros periódicos importantes no debate sobre literatura, arte e crítica política – Vuelta e Plural.  Morreu em 1998 na Cidade do México.

sábado, 29 de março de 2014

Três poemas de Paul Verlaine

Paul Verlaine



O AMOR POR TERRA

O vento derrubou ontem à noite o Amor
Que, no recanto mais secreto do jardim,
Sorria retesando o arco maligno, e assim
Tanta coisa nos fez todo um dia supor!
 
O vento o derrubou ontem à noite. À aragem
Da manhã gira, esparso, o mármore alvo. E à vista
É triste o pedestal, onde o nome do artista
Já mal se pode ler à sombra da ramagem.
 
É triste ver ali de pé o pedestal
Sozinho! e pensamentos graves vêm e vão
No meu sonho em que a mais profunda comoção
Imagina um porvir solitário e fatal
 
É triste! – E tu, não é?, ficas emocionada
Ante o quadro dolente, embora olhando à toa
A borboleta de oiro e púrpura que voa
Sobre os destroços de que a aléa está juncada.
 

CANÇÃO DE OUTONO

Estes lamentos
Dos violões lentos
     Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
     De sono.
 
E soluçando,
Pálido quando
     Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
     De outrora.
 
E vou à-toa
No ar mau que voa,
     Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
     E morta.  
 
 
MEU SONHO FAMILIAR

Sonho às vezes o sonho estranho e persistente
De não sei que mulher que eu quero e que me quer,
E que nunca é, de fato, uma única mulher
E nem outra, de fato, e me compreende e sente.
 
Compreende-me, e este meu coração, transparente
Para ela, não é mais um problema qualquer,
Só para ela, o meu suor de angústia, se quiser,
Chorando, ela transforma em frescura envolvente.
 
Se é morena, ou se loura, ou se ruiva – eu ignoro.
Seu nome? É como o nome ideal, doce e sonoro,
Dos amados que a vida exilou para além.
 
Seu olhar lembra o olhar de alguma estátua antiga,
E sua voz longínqua, e calma, e grave, tem
Certa inflexão de emudecida voz amiga.
 
Paul Verlaine nasceu a 30 de março de 1844 em Metz. Sua estreia na poesia data de 1866 com a publicação de Poemas saturninos. Autor de vasta obra poética, nascida no sobejo do parnasianismo, foi no simbolismo onde o poeta se fez um dos nomes mais importantes da literatura do século XIX. Morreu a 8 de março de 1896 em Paris.
 
* Traduções de Guilherme de Almeida

segunda-feira, 17 de março de 2014

Cinco poemas de Nabokov


EU NÃO PRECISO DE NADA, PARA MINHAS VIAGENS NOTURNAS

Eu não preciso, para minhas viagens noturnas,
de navios, eu não preciso de trens.
A lua ilumina o jardim com-jeito-de-tabuleiro.
A janela está aberta. Estou pronto.

E com o silêncio de sempre — como um gato,
à noite, sobre uma cerca — através
do córrego na fronteira, sem passaporte, minha alma
pula para a outra margem, a russa.

Misterioso, leve, invulnerável,
eu deslizo por entre sucessivos muros,
e sob a luz da lua, o sonho passando veloz por ele,
o guarda da fronteira deveria vigiar, mas em vão.

Eu vôo pelos campos, danço através das florestas —
e quem saberá se neste vasto país
existirá um único ser vivo,
um único cidadão, feliz.

Ao longo do comprido cais o Neva rebrilha.
Tudo está quieto. Com um tardio transeunte
numa praça deserta, minha sombra se depara
e com sua própria fantasia o enfeitiça.

Agora me aproximo de uma construção estranha,
o lugar, em si, eu reconheço…
Lá, nos quartos escurecidos, tudo está mudado,
e tudo irrita a minha sombra.

Lá, crianças dormem. Sobre o canto das almofadas
eu me inclino, e elas começam a sonhar
com brinquedos com os quais, há muito tempo, eu brincava,
com meus navios, com meus trens.

CHUVA

Como se move a cama nestas
noites de árvores que gesticulam
quando pipoca forte a chuva,
brinquedo de lata, a chuva, com garbosos cascos
trotando por sobre o teto sem fim,
viajando para o passado.

Por sobre velhos caminhos o galope da chuva
escorrega, reduz a marcha, de novo acelera
atravessando muitos, confusos anos;
mas ele não consegue jamais dar o mergulho
no ponto mais profundo do passado
porque o sol está lá.

QUARTO DE HOTEL

Nem bem uma cama, nem bem um banco
Papel de parede: um amarelo feio
Um par de cadeiras. Um espelho estrábico.
Nós entramos. Minha sombra e eu.

Nós abrimos com estardalhaço a janela:
os reflexos da noite se espalham pelo chão.
A noite não respira. Com latidos variados,
cachorros ao longe quebram o ar parado.

Imóvel, eu fico lá, na janela,
e no negro bojo do céu
arde, como uma gota dourada de mel
a tenra lua.

LINHAS DA LUA

Diga “noite”. Diga “seixos”: Seixos na Noite.
Espie, pintos encaixotados numa estação solitária! Isto
É agora o ABC do precipício,
O Desperanto que precisamos aprender a escrever.

PRIMAVERA

A locomotiva através dos campos voa,
Uma montanha de pedaços de árvores passa fugindo, veloz
indo apressada até o declive:
a fumaça, como vagalhões brancos, se mistura
com abrilíneas bétulas em colchas.
ainda estão livres as coberturas de verão
dos bancos aveludados dentro do vagão.
Um dente-de-leão amarelo, na beira dos trilhos
É visitado por sua primeira abelha.

Onde antes havia um monte de neve, somente
uma ilhota, retangular e perfurada, restou=
ao lado de uma vala que vai verdejando;
de odores primaveris, ainda por crescer,
a neve vai sendo coberta por fuligem.

A casa de campo está sombria e fria.
no jardim, a alegria dos pombos,
há uma poça refletindo as nuvens.
As colunas e o teto envelhecido,
e também os cotovelos das calhas —
é necessária alguma pintura fresca para tudo isso,
uma camada de tinta verde; na parede
a sombra jovial do pintor
e a sombra em queda da escada.

O topo das bétulas em seu frio azul-celeste,
a casa de campo, os dias de verão,
sempre a mesma, e recorrente, imagem,
ainda que sua perfeição cresça, sempre.
Do exílio, os lamentos se distanciam,
vivem em cada reminiscência minha
numa invertida quietude:
aquilo que para sempre de perdeu é imortal;
e essa eternidade invertida
é a beatitude da orgulhosa alma.
 Poemas publicados inicialmente no Jornal Rascunho. Tradução de André Caramuru Aubert.