sábado, 31 de maio de 2014

Três poemas de Arménio Vieira



Parábola

Por esse tempo um monstro, a Esfinge, devastava os arredores de Tebas, devorando os viandantes que não adivinhavam os seus enigmas (...)

Sobre o desenho de um templo
traço o poema e digo

é néscia a palavra
é fífia o som
é vazia a garganta

Falsa é a voz que vibra o santuário
- a besta de Tebas ocupa já
o plano mais alto
no pedestal dos deuses

tudo encenado e em acto
(Oh, não falte quem engula
o oráculo e a hóstia!)

COM ÉDIPO AUSENTE
- TAL É A MISTIFICAÇÃO DA PALAVRA


Posfácio

Para Manuel Ferreira

Num retomar constante e abandono
os poemas podem ser assim ou de outro modo
até ao infinito. Só que estes
(não importa o sangue ou seiva que a outros se foi pedir)
são bem as marcas que o estar-no-mundo e a dor
feriram numa certa pedra.
E fora outra a sorte ou talvez o lugar e o tempo
e seria diferente o livro
e a lembrança que de uma obra fica
depois de lida e entregue aos bichos.


Construção vertical

Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.

Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.

Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!

Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.

Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Quatro poemas de Alberto da Costa e Silva



O AMOR AOS SESSENTA

Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.

Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos

contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda 

que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem. 

A DESPEDIDA DA MORTE

Falo de mim porque bem sei que a vida
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que posto

ao meu redor se cala, e é pedra, ou, água,
cicia apenas —O teu tempo é a trava
que te impede de ter a calma clara

do chão de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que não corre,
nem pára e nem se apressa, e é só estado,

e nem sequer murmura: — O que te trazem
é o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,

que não repõe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,

uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memória, cálcio, húmus, eis que o mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste
no esplendor que nos dá. A madrugada.


SONETO

Uma ausência de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
chão que não foi meu, na relva simples
outro ser que sonhei se deita e cisma.

Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo-
ou foi o sonho dos demais que sonho?

A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou

um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.


IMITAÇÃO DE BOTTICELLI

Como a luz numa caixa de laranjas,
ou a chuva sobre a mesa de verduras no mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça,

e as flores que traz, na involuntária beleza,
parecem, contra seu corpo de verão enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os pássaros

abrem na casca lisa e perfeita de um fruto.

Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo a 12 de maio de 1931. Autor importante como ensaísta, memorialista, historiador e poeta. Desta última expressão publicou títulos como O parque e outros poemas (1953), O tecelão (1962), Livro de linhagem (1966), As linhas da mão (1978), A roupa no estendal, o muro, os pombos (1981), entre outros. Pela obra poética recebeu em 2000 o Prêmio Jabuti.

 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Três poemas de Aleksándr Púchkin por Jorge de Sena




O Homem que outrora fui…

Tel j'étais autrefois et tel je suis encor  André Chenier

O homem que outrora fui, o mesmo ainda serei:
leviano, ardente. Em vão, amigos meus, eu sei,
de mim se espere que eu possa contemplar o belo
sem um tremor secreto, um ansioso anelo.
O amor não me traiu ou torturou bastante?
Nas citereias redes qual falcão aflante
não me debati já, tantas vezes cativo?
Relapso, porém, a tudo eu sobrevivo,
e à nova estátua trago a mesma antiga of'renda…


Ó belo jovem…

(num acampamento militar no Eufrates)

Ó belo jovem, não escutes
rufar da guerra os tambores!
Não te lances na batalha
co'as hordas dos contendores!

Sei que a morte há-de poupar-te,
e que, onde a sorte se traça,
o anjo Azrael, ao fitar-te,
ver-te-á tão belo, que passa.

Mas a guerra é pior que a morte,
e temo que te desfaça
o encanto fino do porte
e a tua lânguida graça.


É tempo, meu amigo…

É tempo, meu amigo, o coração cansou-se…
Cada hora voa, e é como se com ela fosse
um farrapo daquilo que pensamos vivo.
Tardará muito a morte? Ah, tudo é fugitivo.

Felicidade não, mas paz e liberdade
é quanto espera quem só ainda sonha que há-de
fugir — cansado escravo —, antes da noite escura,
a repousar nos longes da mais clara altura.

Aleksándr Púchkin nasceu em Moscou em 1799. Foi aluno no prestigiado Liceu Imperial de Tsárkoie Seló em 1811, época em que seus poemas passaram a despertar atenção. Perseguido pela censura tsarista, foi exilado em 1820 e passou quatro anos fora da Rússia; no retorno, continuou a ser vigiado por Nicolau I - já então Púchkin havia se tornado historiador oficial do império. Deixou um legado de poemas que vão do romantismo ao classicismo, muitos dos quais se tornaram célebres como"O século de prata". Morreu aos 37 anos num duelo com o oficial francês George-Charles D'Anthès, que cortejara a esposa do poeta. 


sábado, 24 de maio de 2014

Dois poemas de Joseph Brodsky



M. B.

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

* Tradução de Carlos Leite.


Porta San Pancrazio

As abelhas não voaram para longe, nem um cavaleiro partiu
a galope. No bar Gianicolo, velhos companheiros relembram os dias
da infância, e o cubo de gelo derrete­‑se, arrefecendo o frágil motor
grato por beber duas vezes a mesma água.

Oito anos passaram. Guerras rebentaram e esfumaram­‑se,
famílias desfizeram­‑se, a escumalha desnudou os dentes envelhecidos;
aviões caíram do céu e o rádio murmurou «Jesus».
Os lençóis ainda podem ser lavados, mas as rugas da pele

não se rendem à palma mais suave. O sol sobre uma Roma
no Inverno empurra o fumo púrpura com raios desnudos. A cinza
tresanda a folhas queimadas, e a fonte brilha como uma medalha
vacilante pendurada num canhão que ao meio dia dispara a sua salva.

A pedra é usada para manter cativa a memória.
Contudo é mais difícil aparecer do que desaparecer numa perspectiva
fugindo da cidade pelos anos fora e para além
em perseguição do puro tempo, desprovido de amor e de futuro.

A vida sem nós, querida, é pensável. Ela existe como
abelhas, cavaleiros, bares, habitués, colunas, vistas,
e nuvens sobre este campo de batalha cujas estátuas eternas
triunfam, com o seu corpo, sobre a possibilidade de te tocar.

1989

* Tradução de Sandra Costa.

Joseph Brodsky nasceu a 24 de maio de 1940, em Leningrado. A formação literária de Brodsky foi produto de um inusitado outsider; sabe-se que aprendeu polonês para traduzir as obras de poetas da Polônia como Czesław Miłosz e inglês para traduzir John Donne. O segundo idioma serviu para mais. Depois de entrar em conflito e se tornar figura non grata na União Soviética buscou exílio nos Estados Unidos, onde se estabeleceu até o fim da vida. Neste país chegou a atuar como professor nas universidades de Yale, Cambridge e Michigan. Em 1987 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Escreveu poesia, gênero pelo qual ficou reconhecido, ensaios e peças para teatro. Morreu a 28 de janeiro de 1996, em Nova York.



quinta-feira, 22 de maio de 2014

Três poemas de Olga Savary



ÁGUA ÁGUA

Menina sublunar, afogada,
que voz de prata te embala
toda desfolhada?

Tendo como um só adorno
o anel de seus vestidos,
ela própria é quem se encanta
numa canção de acalanto
presa ainda na garganta.


AMOR

O que será:
este labirinto de perguntas
e resposta alguma,
este insistente rugir
de pássaros, este abrir
as jaulas, soltar o bicho
novelo que há em nós,
delicado/feroz morder
(deixa sangrar)
o outro bicho (deixa, deixa)
e toda esta parafernália
a parecer truque enquanto
obsidiante você mente
embora acreditando nas mentiras
e eu use os piores estratagemas
para cobrir-me a retirada
desse vicioso campo de batalha.


UM DIA, OSSOS

A manhã trouxe surpresa de ossos
Guardados em gavetas
Ou organizados atrás de opalescentes,
Dourados vidros,
No corredor propício ao mistério.
Então é o susto nos olhos
E o medo nas mãos inábeis
Tocando toda essa precária matéria
Antiga e clara
E tirando no toque o som de uma música
Escondida
Nessa antiquíssima,
Milenar memória.



Olga Savary nasceu em Belém a 21 de maio de 1933. Além desta cidade, viveu em Fortaleza e no Rio de Janeiro, onde residia. Escreveu prosa e poesia. Entre os livros publicados neste último gênero estão Espelho provisório, o de estreia na poesia em 1970, Sumidouro (1977), Magma (1982), Berço esplendido (1987), Rudá (1994), entre outros. Olga Savary morreu no dia 16 de maio de 2020.

sábado, 17 de maio de 2014

Três poemas de Mario Benedetti



SOU MEU HÓSPEDE

Sou meu hóspede noturno
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
procuro ser tratado
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
não coleciono padeceres
nem os sarcasmos
que deixam marca
sou tão-só
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
como hóspede
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca


POR QUE CANTAMOS

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino


AMOR DE TARDE

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.

Mario Benedetti nasceu a 14 de setembro de 1920 em Paso de los Toros. Mudou-se para Montevidéu ainda em criança e só deixou a cidade nas andanças pelo exílio – entre 1973 e 1985. Escreveu vasta obra, incluindo, em sua maioria, livros de poesia. Morreu a 17 de maio de 2009.


* Traduções de Julio Luiz Ghelen


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Cinco poemas de Miklós Radnóti



MARCHA FORÇADA

Louco quem da terra morto se levanta e de novo se arrasta,
e com a dor do nômade movimenta tornozelos e joelhos,
e ainda assim se põe a caminho, como se alçado por asas,
e as valas o chamam em vão, não tem coragem de ficar,
e se você perguntar, por que não? talvez ele responda
que a mulher espera por ele e uma morte mais bonita, mais sábia.
Embora o crédulo esteja louco, porque lá sobre os lares
há muito apenas voam cinzas
a parede da casa desabou, o pé de ameixa se partiu,
e de medo é tormentosa a noite da terra natal.
Oh, se eu pudesse acreditar: que não é apenas no coração que eu levo
tudo que ainda vale a pena, e que existe uma casa à qual voltar;
se ainda existisse! e como em outros tempos na antiga varanda fresca
zumbisse a colmeia da paz, enquanto resfriava a geleia de ameixa,
e o silêncio do final de verão se banhasse ao sol nos jardins sonolentos,
em meio à folhagem frutas pendessem nuas,
e Fanni me esperaria loira diante da cerca vermelha
e lentamente escreveria sombra a lenta manhã, -
mas talvez ainda possa acontecer! A Lua está tão redonda!
Não prossiga, amigo, grite comigo! e vou me levantar!
Bor, 1944, 15 de setembro


CARTÕES-POSTAIS

1
Da Bulgária, a palavra espessa e selvagem dos canhões se derrama,
pisoteia o dorso da montanha, depois hesita e cai,
se atropelam homens, animais, carroças e pensamentos,
o caminho se detém gemente, o céu cacheado desliza.
Você está sempre comigo na confusão incessante,
no fundo da minha consciência você brilha eterna imóvel
e muda, como o anjo que contempla o extermínio,
ou o verme fúnebre que devora a árvore apodrecida.
30 de agosto de 1944. Entre as montanhas.


2
A nove quilômetros daqui ardem
rolos de feno e casas,
e à margem dos pastos sentados mudos
camponeses horrorizados sorvem cachimbos.
Aqui ainda pregueia a água a pequenina pastora que pisa no lago
e bebem nuvens sobre a água debruçadas as ovelhas felpudas.
Cservenka, 6 de outubro de 1944


3
Da boca dos bois escorre saliva sangrenta,
os homens todos urinam sangue,
a companhia se detém em novelos malcheirosos selvagens.
Acima de nós sopra a morte tremenda.1

Mohács, 24 de outubro de 1944


4
Desabei a seu lado, seu corpo se virou
e já estava teso, como corda, quando se rompe.
Tiro na nuca. - Assim será também o seu fim, -
sussurrei para mim mesmo, - continue deitado sereno.
A paciência agora desabrocha em morte. -
Der springt noch auf, - ouvi acima de mim.
No meu ouvido secava sangue misturado a lama.2
Szentkirályszbadja, 31 de outubro de 1944


Notas do tradutor
1. A palavra "companhia", acima, também significa "século" em húngaro.
2. O companheiro morto era um violinista. A expressão em alemão significa algo como "ele ainda se debate".


Miklós Radnóti nasceu em 5 de maio de 1909 e morreu em 10 de novembro de 1944. Fez doutorado em húngaro e francês e desde jovem iniciou o trabalho de traduzir poesia do grego, latim, inglês, francês e alemão. Seu livro de estreia, Saudações pagãs foi publicado em 1930. Escreveu ainda outros como Brisa crescente (1933), Lua nova (1935) e Estraga íngreme (1938). Durante a Segunda Guerra Mundial foi enviado ao campo de concentração de Bor. Em 1946, quando a vala onde pereceu foi encontrada, resgatou-se uma caderneta em que trazia os seus últimos poemas depois publicados em Céu espumante.

* Traduções de Paulo Schiller para a Folha de São Paulo.

domingo, 11 de maio de 2014

Poemas para o Dia das Mães

Maternidade. José de Almada Negreiros


minha mãe dizia

ferve, água!
frita, ovo!
pinga, pia!

e tudo obedecia

(Paulo Leminski)


PARA SEMPRE

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

(Carlos Drummond de Andrade)


MINHA MÃE

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.

(Vinicius de Moraes)


MÃE

A mulher fia o filho.
No silêncio do corpo
inaugura-se: mãe.
O ventre: curvatura de sol
levantando-se
em mansidão de horizonte.
De si própria se esquece:
tecelã da rosa que já aflora
em crescimento lento
no seu sangue.

(Zila Mamede)


MÃE

Mãe… São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras…
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer…
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!

(Mário Quintana)


MATER

Para Raimunda Salgado

De ti não há sequer
um álbum de família:
retratos da infância
nos campos de arroz e gergelim.

Talvez reste em pensamento
pedaços de tua voz
no vento
como impressões digitais
num rio.

No dia em que o azul
roubou teus olhos
e o silêncio rival rasgou
teu nome,
cotovias cantaram no meu rastro.
no dia em que a manhã
cerrou teus olhos.

Sem ti
sou a flor da árvore
desolada. Agora
o mar bate em minhas rochas
e a noite ronda meus calcanhares.

(Salgado Maranhão)


MÃE!

Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
  
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
  
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
  
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!
  
(Almada Negreiros)


domingo, 4 de maio de 2014

Três poemas de Paulo Setúbal



Só tu

Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram
Já não me lembro, nem sei...
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!
Mas tu - que rude contraste!
Tu, que jamais me beijaste,
Tu, que jamais abracei,
Só tu, nestalma, ficaste,
De todas as que eu amei. 


Sinh'Ana

Sinh'Ana é uma velhota quitandeira,
Comadre e amiga desta vila inteira,
Rica nos anos, rija na saúde
Que vive toscamente ao pé da estrada,
Numa casinha, simples e barreada,
Dum pitoresco delicioso e rude.

Ah! Quanta vez, nessas manhãs vermelhas,
Cheias de aromas, de canções, de abelhas,
Nós dois, numa travessa caminhada,
Não vínhamos ali — que bom passeio! —
Ver a frescura, a paz, o casto asseio,
Da humilde casinhola ao pé da estrada!

E quanta vez também (que ação profana!)
Doirávamos a toca de Sinh'Ana,
Com beijos e carícias romanescas,
Enquanto a velha, a cândida velhinha,
Voltando ingenuamente da cozinha,
Trazia um prato de broinhas frescas...


A vila

Lembro-me bem dessa vilota rude,
Onde eu me fui, sem gosto e sem saúde,
Buscar um poiso para os meus cansaços.
Que terra triste! Triste e sertaneja:
A escola, a hospedaria, a antiga igreja,
E a capelinha do Senhor dos Passos...

Na esquina, em frente à Câmara, o barbeiro.
Logo depois, num colossal letreiro,
A "Loja Popular" do velho Lopes.
E é bem no largo da Matriz que fica
A sempiterna, a clássica botica,
Com seus reclames de óleos e xaropes...

Ah! Foi aí, nesse ermo de tristeza,
Nessa terreola fúnebre e burguesa,
Tão sem encantos, tão descolorida,
Que eu fui viver, com lágrimas e flores,
No mais cruel amor dos meus amores,
A página melhor da minha vida!



De Alma cabocla 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Dois poemas de Nilto Maciel



Dor 

Não tenho mal nenhum, senhora minha,
como se fosse puro, imaculado,
como se fosse um anjo, um serafim,
como se fosse deus, imune à dor. 

Eu nada sinto, dor nenhuma tenho,
quer na cabeça, quer no amargo peito.
Não tenho mal nenhum, senhora minha,
perfeitamente são me sinto e puro. 

Se existe mal em mim, se existe dor,
é a de morrer tão cedo, a pleno sol,
envelhecer como qualquer mortal. 

E a dor maior, minha senhora bela,
é dentro d'alma, bem profunda e aguda,
a dor chamada angústia, a dor de ser. Possessão 

Nada é meu,
nem a vida,
que é minha. 


Se me chamares fogo 

Se me chamares fogo
eu te labaredas.

Se me quiseres água
eu te correntezas.

Se me julgares vento
eu te tempestades.

Se me disseres pedra
eu te porcelanas.

Se me chamares chão
eu te profundezas.

Se me quiseres noite
eu te estrela Vésper.

Se me julgares pássaro
eu te vendavais.

Se me disseres corvo
eu te Allan Poe.

Se me chamares serpe
eu te paraíso.

Se me quiseres corda
eu te Tiradentes.

Se me julgares diabo
eu te tentações.

Se me disseres anjo
eu te candelabros.

Se me chamares deus
eu te eternidade.

Se me quiseres louco
eu te poesia.

Se me julgares santo
eu te crucifixos.

Se me disseres vida
eu te funerais.

Se me chamares mito
eu te tecelões.

Se me quiseres pródigo
eu te ancestrais.

Se me julgares hoje
eu te amanhã.

Se me disseres sempre
eu te nunca mais.

Se me chamares vem
eu te seguirei.



*Publicado inicialmente em Jornal de Poesia e site do Antonio Miranda, respectivamente.