segunda-feira, 30 de junho de 2014

Três poemas de José Emilio Pacheco


Indesejável

O guarda não me deixa entrar.
Já passei do limite de idade.
Provenho de um país que já não existe.
Meus documentos não estão em ordem.
Falta um carimbo.
Necessito outra assinatura.
Não falo o idioma.
Não tenho conta no banco.
Fui reprovado no exame de admissão.
Cancelaram minha vaga na grande fábrica.
Me desempregaram hoje e para sempre.
Careço inteiramente de influências.
Estou neste mundo há muito tempo.
E nossos amor dizem que já é hora
de calar-me e meter-me no lixo.


Na República dos Lobos

Na República dos Lobos
nos ensinaram a uivar.

Mas ninguém sabe
se nosso uivo é ameaça, queixa,
um tipo de música incompreensível
para quem não seja lobo;
um desafio, uma oração, um discurso

ou um monólogo solipsista.


Regresso a Sísifo

Rodou a pedra e outra vez como antes
a empurrarei, a empurrarei ladeira acima
para vê-la rodar de novo.
Começa a batalha que aconteceu mil vezes
contra a pedra e Sísifo e mim mesmo.

Pedra que nunca deterás no alto:
dou-te as graças por rodar ladeira abaixo.
Sem este drama inútil, a vida seria inútil.




domingo, 29 de junho de 2014

Quatro poemas de Czesław Miłosz




Cardo, urtiga

(...) le chardon et la haute
Ortie et l'ennemie d'enfance belladonne
O. Miłosz

Cardo, urtiga, bardana, beladona
Têm futuro. Deles são os baldios,
Os trilhos enferrujados, o céu e o silêncio.

Quem serei eu para as gerações vindouras,
Quando depois da babel das línguas se premiar o silêncio?

Devia ter.me resgatado o dom de versejar,
Mas tenho de estar pronto para a terra não gramatical.

Com o cardo, a urtiga, a bardana, a beladona,
E sobre eles uma brisa, uma nuvem sonolenta, o silêncio.




Fé, é quando vemos
A gota de orvalho ou a folhinha pelo rio fluir
E sabemos que existem pois têm de existir.
E ainda que de olhos fechados nos deixemos sonhar
Só haverá no mundo o que havia
E as águas do rio a folhinha vão levar.

Fé, é quando ferimos
O pé na pedra e sabemos que as pedras
Lá estão para que os pés nos firam.

Vejam quão grande é a sombra das árvores,
Assim como a nossa e a das flores,
O que não tem sombra, não tem força para existir.


Amor
Amor significa olharmo-nos
Como se olha as coisas não familiares,
Pois somos apenas uma entre milhares.
E quem assim se olha, mesmo sem saber,
De muitas mágoas o coração vai proteger.
E chama-no de antigo o pássaro e a árvore.

Então sim, quer desfrutar de si e de tudo
Para que tudo brilhe no clarão da plenitude.
E não importa não saber ao que servir,
Nem sempre serve melhor quem sabe.
* Estes poemas são da tradução portuguesa Czesław Miłosz e Wisława Szymborska, Alguns Gostam de Poesia. Antologia, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2004.


Conversa com Jeanne

Não vamos mais falar de filosofia, Jeanne, chega.
Tantas palavras, tanto papel, quem aguenta?
Falei a você a verdade, quanto ao meu alheamento.
Parei de me preocupar com minha vida malformada.
Não é melhor nem pior do que as tragédias humanas comuns.

Durante mais de trinta anos travamos esse nosso debate.
Como agora, na ilha sob os céus dos trópicos.
Fugimos de um pé-d’água, logo depois abre o sol, outra vez,
E fico aturdido, deslumbrado, com a essência esmeralda das folhas.

Submergimos na espuma, onde as ondas quebram,
Nadamos para longe, para onde o horizonte é um emaranhado de bananeiras,
E palmeiras erguem pequenos moinhos de vento.
Estou sendo acusado: de que não me ponho à altura da minha obra,
Não exijo o bastante de mim mesmo,
Como podia ter aprendido com Karl Jaspers,
Que meu desprezo pelas opiniões desta época vem ficando mais frouxo.

Deslizo em uma onda e olho para as nuvens brancas.
Tem razão, Jeanne, não sei como me interessar pela salvação da minha alma.
Alguns são chamados, outros se viram como podem.
Eu aceito: o que coube a mim está bem.
Não me arrogo a dignidade de um velho sábio.
Intraduzível em palavras, escolho meu lar no que é agora,
Em coisas deste mundo, que existem e, por isso, nos encantam:
A nudez das mulheres na praia, os cones cor de cobre de seus seios,
Hibiscos, alamandas, um lírio vermelho, devorar
Com meus olhos, lábios, língua, o suco de goiaba, o suco de la prune de Cythère,
Rum com gelo e melaço, orquídeas trepadeiras
Em uma floresta tropical, onde as árvores se sustentam nas hastes de suas raízes.

A morte, você me diz, a minha e a sua, anda cada vez mais perto,
Sofremos e este pobre mundo ainda não foi o bastante.
A terra negra e púrpura das hortas
Estará aqui, quer alguém a veja, quer não.
O mar, como hoje, vai exalar seu hálito das profundezas.
Diminuindo, desapareço na imensidão, cada vez mais livre.

* Tradução de Rubens Figueiredo publicada na revista Inimigo rumor, n.6, de julho de 1996.


Czesław Miłosz nasceu no dia 30 de junho de 1911 em Kėdainiai. Autor de romances, ensaios e poemas. Figura bastante integrada aos movimentos de resistência à ocupação nazista, começou na literatura com a publicação de poemas de resistência. Aliás, o trabalho combativo seria para toda uma vida: integrou-se ao governo comunista da Polônia para, pouco tempo depois, força-se ao autoexílio por discordar com os rumos do regime. Em Paris, publica A mente cativa, uma antologia com ensaios sobre a submissão dos intelectuais poloneses ao comunismo. Recebeu os principais prêmios literários por sua carreira, incluindo o Prêmio Nobel de Literatura, em 1980. Morreu no dia 14 de agosto de 2004 na Cracóvia.   

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Quatro poemas de Guimarães Rosa

Guimarães Rosa no Itamaraty, Rio de Janeiro, 1964. Fotografia David Drew Zingg.
Acervo Instituto Moreira Salles. (detalhe/reprodução)

Madrigal

No tronco do jequitibá,
que estavas abraçando,
colando-lhe o corpo, do rostinho aos pés,
vejo os arranhões fundo,
onde o canguçu, quase de pé,
afia as garras,
e, mais embaixo, a casca estraçalhada,
onde os caititus vêm acerar os dentes...


Alaranjado

No campo seco, a crepitar em brasas,
dançar as últimas chamas da queimada,
tão quente que o sol pende no ocaso,
bicado,
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura...


Gargalhada 

Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...


Consciência Cósmica

Já não é preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo de meu corpo...

João Guimarães Rosa nasceu a 27 de junho de 1908 em Cordisburgo. Reconhecido um dos nomes mais importantes das literaturas de língua portuguesa pela publicação de obras como Sagarana e Grande sertão: veredas, Rosa iniciou sua vida literária pela poesia, quando escreveu nos anos 1930 um livro que só aparecerá publicamente muitas décadas depois: Magma. Com este ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras, instituição para a qual foi eleito a 5 agosto de 1963. Morreu a 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro. 


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (7)

Língua



(ver o vídeo)

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(- Será que ele está no Pão de Açúcar?
- Tá craude brô
- Você e tu
- Lhe amo
- Qué queu te faço, nego?
- Bote ligeiro!
- Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
- Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
- I like to spend some time in Mozambique
- Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Três poemas de William Butler Yeats



Leda e o cisne

Súbito golpe: as grandes asas a bater
Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada
Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;
O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.

Dedos incertos de terror, como empurrar
Das coxas bambas o emplumado resplendor?
Pode o corpo, sob esse impulso de brancor,
O coração estranho não sentir pulsar?

Um tremor nos quadris engendra incontinenti
A muralha destruída, o teto, a torre a arder
E Agamêmnon, o morto.

Capturada assim,
E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim
Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,
Antes que a abandonasse o bico indiferente?

* Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos


A rosa do mundo

Quem sonhou que a beleza passa como um sonho?
Por estes lábios vermelhos, com todo o seu magoado orgulho,
Tão magoados que nem o prodígio os pode alcançar,
Tróia desvaneceu-se em alta chama fúnebre,
E morreram os filhos de Usna.

Nós passamos e passa o trabalho do mundo:
Entre humanas almas que se agitam e quebram
Como as pálidas águas e seu fluxo invernal,
Sob as estrelas que passam, sob a espuma do céu,
Vive este solitário rosto.

Inclinai-vos, arcanjos, em vossa incerta morada:
Antes de vós, ou de qualquer palpitante coração,
Fatigado e gentil alguém esperava junto ao seu trono;
Ele fez do mundo um caminho de erva
Para os seus errantes pés.


Tudo pode tentar-me

Tudo pode tentar-me a que me afaste deste ofício do verso:
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior —
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo e surdo que um peixe.

* Traduções de José Agostinho Baptista.

William Butler Yeats nasceu a 13 de junho de 1865 em Dublin. Autor que ficou reconhecido por sua obra para o teatro e principalmente pela poesia. Sua primeira obra é fortemente marcada por resquícios do romantismo até tomar outra linha a partir da relação do autor com os modernistas. Em 1923 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura; a Academia Sueca designou sua poesia como “uma forma de elevado nível artístico” capaz de “dá expressão ao espírito de toda uma nação”. Morreu em Menton, na França, no dia 28 de janeiro de 1939.



quarta-feira, 11 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (6)

As Linguagens

Na cabeça de um homem há muitas línguas a falar diferente
Falam com bocados umas das outras e estão unidas sem saber
Quando um homem pensa sozinho consigo mesmo
E quer tirar da cabeça uma produção útil para todos.

Por exemplo: Penso Rio. É matsi, é water, é água,
É quilos de litros a andar depressa
É uma música da água, é um desenho da água na cabeça.
Posso falar Rio; posso medir Rio; posso desenhar Rio.
Posso tirar o Rio da cama e pôr o rio acordado num papel
Que é um retrato parecido deste Rio mesmo este.

Isto que faz na cabeça de um homem tirar retrato são línguas
O Rio, a Árvore , o Animal, a Rocha, a Terra, o Sol, o Vento
São as caras da Natureza que as minhas línguas estudam.

A escola Primária Colonial está mal.
A língua das palavras não chega para tudo
É preciso aprender uma língua dos números
É preciso aprender a língua dos desenhos
As três línguas juntas é que são a língua verdadeira do Homem
E depois o Homem já fala à Natureza bem
E pode aprender dela tudo o que há-de ensinar.

Sigo a pista do cabrito: pegadas e capim partido. É desenho isso.
O excremento está fresco no Sol. Passou pouco. É cálculo aritmético.
Está ali. Não é cabrito. É cabrita. Falei com palavras.
Conheço que não sei pensar nada só numa língua.

Mutimati Barnabé João, Eu, o Povo, Biblioteca Editores Independentes, nº58, 2008


terça-feira, 10 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (5)

Língua


Esta língua é como um elástico
que espicharam pelo mundo.
No início era tensa,
de tão clássica.

Com o tempo, se foi amaciando,
foi-se tornando romântica,
incorporando os termos nativos
e amolecendo nas folhas de bananeira
as expressões mais sisudas.

Um elástico que já não se pode
mais trocar, de tão gasto;
nem se arrebenta mais, de tão forte.

Um elástico assim como é a vida
que nunca volta ao ponto de partida. 


Poema de Gilberto Mendonça Teles


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (4)

Pátria


Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.

Rui Knopfli. Poema incluído no livro Memória Consentida, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa: 1982.


Os nomes da 9ª edição do caderno-revista 7faces




Ainda não será dessa vez que revelaremos a data de apresentação da 9ª edição do caderno-revista 7faces. Nem diremos quem será o poeta homenageado da vez. Diremos apenas os nomes que estarão por lá. Anotem: Vivian de Moraes, Noemi Jaffe, Ricardo Domeneck, Pedro Sevylla de Juana, Mariana Laje, Cleyson Gomes, Davi Kinski, Francisco Hutz, Danilo Augusto, Rebeca Rasel, Luiz Felipe Marinheiro. Noutra ocasião revelaremos os nomes dos ensaístas e o poeta homenageado. E o mais esperado: a data. 

Enquanto isso, visite nosso site! Reveja nossas edições!

domingo, 8 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (3)

lamento para a língua portuguesa



não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.

Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos

sábado, 7 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (2)

Língua Mater Dolorosa



Tu que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda a bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luís Vaz a chama joalhada

tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

Já na glote és cascalho és malho és míngua,
de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca.


* Poema publicado pela primeira vez no livro Inéditos, 1973-76, e que integra a antologia de toda a poesia de Natália Correia


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Poemas para a Língua Portuguesa (1)

Língua portuguesa


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Dois poemas de Maria Gabriela Llansol




Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti
                                     até que a dor alegre recomece.



7
Não resisto a contar à rapariga:
Ontem passei por um encontro entre dois rapazes que se amavam,
Curtiam, como dizes, sentados no colo um do outro. Era um amor
Humano nas raias do explícito. Aquele laço de se receberem
Mutuamente no regaço estava todavia perto de desatar-se Triste
Que assim fosse.
Havia sobre a cena uma pequena caixa, e aquele que decidira
Desunir-se escrevia o seu nome animal dentro dela. Por sua vez,
O outro para nomear o próximo, desenhou com lentidão um
Pequeno candeeiro de muitas luzes. Vi perfeitamente a progressão
Do desenho, e como ele se detinha na contemplação de cada
Anjo.

Maria Gabriela Llansol nasceu a 24 de novembro de 1931, em Lisboa. Iniciou sua carreira na literatura a partir de 1962 quando publicou Os pregos na erva. Depois deste livro publicou vasta obra que se destaca pela prosa. Toda sua literatura é a de um questionamento, sobretudo, das formas literárias. Traduziu ao português nomes como Emily Dickinson, Paul Verlaine, Rainer Maria Rilke, Rimbaud, Apollinaire, Paul Éluard e Charles Baudelaire. Em 1985, por Um falcão no punho recebeu o Prêmio Dom Dinis; em 1990, por Um beijo dado mais tarde, o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, honraria que volta a conquistar em 2006 por Amigo e amiga. Morreu a 3 de março de 2008, em Sintra.