sábado, 13 de setembro de 2014

Três inéditos de Murilo Mendes




Alguém

Alguém é absurdo
lúcido
nutrido de Kafka
Descartes
alguém toma a insônia como se fosse
um comprimido
alguém sofre de guerra
como outro sofre de câncer.
Alguém sabe que a matéria
é metafísica.

Existirão de verdade para ele
o radar
a lagartixa
o estruturalismo
a telepatia?

Alguém odeia as ditaduras
as batatas fritas
alguém se vê circundado por insetos ou por hipóteses

Alguém é um romântico irreversível:
a cibernética não mudará sua cabeça.


A viagem

Serei um androide?
Talvez eu seja um produto
da defasagem tecnológica
entre Juiz de Fora e Pequim.

Na época da minha infância
eu queria ir do Brasil à China
a cavalo.

A viagem se realizou
Ninguém se deu conta

Nem mesmo eu.


Retorno

Voltarei um dia
para saudar o reino mineral
onde a desordem é mínima.


Murilo Mendes nasceu a 13 de maio de 1901 em Juiz de Fora. É considerado pela crítica um dos nomes mais significativos da literatura surrealista no Brasil. Sua vasta obra cobre prosa e poesia, este último gênero no qual ficou reconhecido. Seu primeiro livro Poemas data de 1930. Depois vieram títulos como A poesia em pânico (1937), As metamorfoses (1944), Mundo enigma (1945), Poesia liberdade (1947), Siciliana (1959), Tempo espanhol (1959), Poliedro (1972), entre outros. Morreu a 13 de agosto de 1975 em Lisboa. 




* Em 2014, a obra de Murilo Mendes ganha reedição pela Cosac Naify. Além disso sai uma Antologia poética, com compilação inédita de poemas selecionados por Júlio Castañon Guimarães, da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e Murilo Marcondes de Moura, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo. Os três poemas aqui publicados pertencem a essa antologia.

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