quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O cronópio que (também) era poeta



Os amantes

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?  
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos. 


Os deuses

Os deuses caminham entre coisas pisoteadas, segurando
as pontas dos seus mantos com gesto de asco.
Entre gatos podres, entre larvas abertas e acordeões,
sentindo nas sandálias a umidade dos farrapos corrompidos,
os vômitos do tempo.

Em seu céu despido já não moram, lançados
fora de si por uma dor, um sonho turvo,
estão feridos de pesadelo e lama, parando
para recontar seus mortos, as nuvens ao contrário,
os cães de língua quebrada,

a espreitar invejosos o abismo
onde ratos eretos disputam chiando
pedaços de bandeiras.


Viagem infinita

para quem com seu incêndio te ilumina,
cósmico caracol de azul sonoro,
branco que vibra um címbalo de ouro,
último trecho da lâmina fina.

a mão que te busca na penumbra
se detém na tépida encruzilhada
onde musgo e coral guardam a entrada
e um rio de pirilampos te alumbra,

sim, portulano, da esmeralda o fulgor,
sirte e fanal nua mesma bandeja
quando a boca navegante beija
a poça mais profunda do teu dorso,

suave canibalismo que devora
sua presa que o dança no abismo ermo,
oh, labirinto exato de si mesmo
onde o pavor das delícias mora

água para a sede de quem te viaja
enquanto a luz que junto ao leito vela
desce às tuas coxas sua úmida gazela
e por fim a trêmula flor escacha