segunda-feira, 17 de março de 2014

Cinco poemas de Nabokov


EU NÃO PRECISO DE NADA, PARA MINHAS VIAGENS NOTURNAS

Eu não preciso, para minhas viagens noturnas,
de navios, eu não preciso de trens.
A lua ilumina o jardim com-jeito-de-tabuleiro.
A janela está aberta. Estou pronto.

E com o silêncio de sempre — como um gato,
à noite, sobre uma cerca — através
do córrego na fronteira, sem passaporte, minha alma
pula para a outra margem, a russa.

Misterioso, leve, invulnerável,
eu deslizo por entre sucessivos muros,
e sob a luz da lua, o sonho passando veloz por ele,
o guarda da fronteira deveria vigiar, mas em vão.

Eu vôo pelos campos, danço através das florestas —
e quem saberá se neste vasto país
existirá um único ser vivo,
um único cidadão, feliz.

Ao longo do comprido cais o Neva rebrilha.
Tudo está quieto. Com um tardio transeunte
numa praça deserta, minha sombra se depara
e com sua própria fantasia o enfeitiça.

Agora me aproximo de uma construção estranha,
o lugar, em si, eu reconheço…
Lá, nos quartos escurecidos, tudo está mudado,
e tudo irrita a minha sombra.

Lá, crianças dormem. Sobre o canto das almofadas
eu me inclino, e elas começam a sonhar
com brinquedos com os quais, há muito tempo, eu brincava,
com meus navios, com meus trens.

CHUVA

Como se move a cama nestas
noites de árvores que gesticulam
quando pipoca forte a chuva,
brinquedo de lata, a chuva, com garbosos cascos
trotando por sobre o teto sem fim,
viajando para o passado.

Por sobre velhos caminhos o galope da chuva
escorrega, reduz a marcha, de novo acelera
atravessando muitos, confusos anos;
mas ele não consegue jamais dar o mergulho
no ponto mais profundo do passado
porque o sol está lá.

QUARTO DE HOTEL

Nem bem uma cama, nem bem um banco
Papel de parede: um amarelo feio
Um par de cadeiras. Um espelho estrábico.
Nós entramos. Minha sombra e eu.

Nós abrimos com estardalhaço a janela:
os reflexos da noite se espalham pelo chão.
A noite não respira. Com latidos variados,
cachorros ao longe quebram o ar parado.

Imóvel, eu fico lá, na janela,
e no negro bojo do céu
arde, como uma gota dourada de mel
a tenra lua.

LINHAS DA LUA

Diga “noite”. Diga “seixos”: Seixos na Noite.
Espie, pintos encaixotados numa estação solitária! Isto
É agora o ABC do precipício,
O Desperanto que precisamos aprender a escrever.

PRIMAVERA

A locomotiva através dos campos voa,
Uma montanha de pedaços de árvores passa fugindo, veloz
indo apressada até o declive:
a fumaça, como vagalhões brancos, se mistura
com abrilíneas bétulas em colchas.
ainda estão livres as coberturas de verão
dos bancos aveludados dentro do vagão.
Um dente-de-leão amarelo, na beira dos trilhos
É visitado por sua primeira abelha.

Onde antes havia um monte de neve, somente
uma ilhota, retangular e perfurada, restou=
ao lado de uma vala que vai verdejando;
de odores primaveris, ainda por crescer,
a neve vai sendo coberta por fuligem.

A casa de campo está sombria e fria.
no jardim, a alegria dos pombos,
há uma poça refletindo as nuvens.
As colunas e o teto envelhecido,
e também os cotovelos das calhas —
é necessária alguma pintura fresca para tudo isso,
uma camada de tinta verde; na parede
a sombra jovial do pintor
e a sombra em queda da escada.

O topo das bétulas em seu frio azul-celeste,
a casa de campo, os dias de verão,
sempre a mesma, e recorrente, imagem,
ainda que sua perfeição cresça, sempre.
Do exílio, os lamentos se distanciam,
vivem em cada reminiscência minha
numa invertida quietude:
aquilo que para sempre de perdeu é imortal;
e essa eternidade invertida
é a beatitude da orgulhosa alma.
 Poemas publicados inicialmente no Jornal Rascunho. Tradução de André Caramuru Aubert.