domingo, 29 de novembro de 2015

Dois poemas de Nauro Machado



OFÍCIO

Ocupo o espaço que não é meu, mas do universo.
Espaço do tamanho do meu corpo aqui,
enchendo inúteis quilos de um metro e setenta
e dois centímetros, o humano de quebra.
Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater
serviços de excrementos em papéis caídos
numa máquina Remington, ou outra qualquer.
E me mandam pro inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano existir burocrático.
E depois há o escárnio da minha província.
E a minha vida para cima e para baixo,
para baixo sem cima, ponte umbilical
partida, raiz viva de morta inocência.
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui?
E depois ninguém sabe mesmo do espaço
que ocupo, desnecessário espaço de pernas
e de braços preenchendo o vazio que eu sou.
E o mundo, triste bronze de um sino rachado,
o mundo restará o mesmo sem minha quota
de angústia e sem minha parcela de nada.


A SENTENÇA

Ó solidão, minha mãe
em toda parte do corpo,
meu escaler sem esperança
no oceano dos naufrágios.

Só as árvores estão vivas
no meu espírito que é morto.
Ó sinos, pombas errantes
no bronze da eternidade!

Remai, tempo de amargura,
às praias sem amanhã.
Ó solidão, minha mãe,
medusa erguida sem pai.


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Um poema inédito de Carlos Drummond de Andrade



O poema das mãos soluçantes, que se erguem num desejo e numa súplica

Como são belas as tuas mãos, como são belas as tuas mãos pálidas como uma canção em surdina...
As tuas mãos dançam a dança incerta do desejo, e afagam, e beijam e apertam...
As tuas mãos procuram no alto a lâmpada invisível, a lâmpada que nunca será tocada...
As tuas mãos procuram no alto a flor silenciosa, a flor que nunca será colhida...
Como é bela a volúpia inútil de teus dedos...
O poema das mãos que não terão outras mãos numa tarde fria de Junho
Pobres das mãos viúvas, mãos compridas e desoladas, que procuram em vão, desejam em vão...
Há em torno a elas a tristeza infinita de qualquer coisa que se perdeu para sempre...
E as mãos viúvas se encarquilham, trêmulas, cheias de rugas, vazias de outras mãos...
E as mãos viúvas tateiam, insones, − as friorentas mãos viúvas...
O poema dos olhos que adormeceram vendo a beleza da terra
Tudo eles viram, viram as águas quietas e suaves, as águas inquietas e sombrias...
E viram a alma das paisagens sob o outono, o voo dos pássaros vadios, e os crepúsculos sanguejantes...
E viram toda a beleza da terra, esparsa nas flores e nas nuvens, nos recantos de sombra e no dorso voluptuoso das colinas...
E a beleza da terra se fechou sobre eles e adormeceram vendo a beleza da terra...


Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Estreou na literatura em 1930 com a publicação de Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais da literatura brasileira como Sentimento do mundoA rosa do povo e Claro enigma. Morreu no Rio de Janeiro em 1987. 

* Este poema foi apresentado no jornal O Globo em 19 de novembro de 2015.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Dois poemas de William Blake



O TIGRE

Tigre, Tigre, viva chama 
Que as florestas da noite inflama. 
Que olho ou mão imortal podia 
Traçar-te a horrível simetria? 

Em que abismo ou céu longe ardeu 
O fogo dos olhos teus? 
Com que asas ousou ele o voo? 
Que mão ousou pegar o fogo? 

Que arte & braço pôde então 
Torcer-te as fibras do coração? 
Quando ele já estava batendo, 
Que mão e que pés horrendos? 

Que cadeia? Que martelo, 
Que fornalha teve o teu cérebro? 
Que bigorna? Que tenaz 
Pegou-lhe os horrores mortais? 

Quando os astros alancearam 
O céu e em pranto o banharam, 
Sorriu ele ao ver seu feito? 
Fez-te quem fez o Cordeiro? 

Tigre, Tigre, viva chama 
Que as florestas da noite inflama, 
Que olho ou imortal mão ousaria 
Traçar-te a horrível simetria? 

* Tradução de José Paulo Paes



O LIMPADOR DE CHAMINÉS

Ao morrer minha mãe, eu era criancinha; 
E meu pai me vendeu quando ainda a língua minha 
Dizia “vale-dor!” De “varredor” não fujo, 
Pois limpo chaminés, e sigo sempre sujo. 

Chorou Tom Dacre ao lhe rasparem o cabelo, 
Cacheado como um cordeirinho. E eu disse ao vê-lo: 
“Não chores, Tom! Porque a fuligem não mais deve 
Manchar, como antes, teu cabelo cor de neve.” 

E ele ficou quietinho; e nessa noite, então, 
Enquanto ele dormia, teve uma visão: 
Viu Dick, Joe, Ned e Jack, - e mil colegas mais, - 
Encerrados em negros caixões funerais. 

E um anjo apareceu, com chave refulgente, 
E abriu os seus caixões, soltando-os novamente; 
E correm na verdura, a rir, para o arrebol, 
E se banham num rio e reluzem ao sol. 

Brancos e nus, sem mais sacolas e instrumentos, 
Eis que sobem as nuvens, brincam sobre os ventos; 
E esse anjo disse a Tom que, se ele for bonzinho, 
Terá Deus como pai, e todo o seu carinho. 

E assim Tom despertou; e, antes do sol raiar, 
Com sacolas e escovas fomos trabalhar. 
Feliz, Tom nem sentia o frio matinal; 
Quem cumpre o seu dever não teme nenhum mal.

* Tradução de Paulo Vizioli

William Blake nasceu a 28 de novembro de 1757 em Londres. Sua atividade criativa se destaca na poesia e na ilustração. Alguns dos títulos que se destacam entre a primeira expressão estão O casamento do céu e do inferno, Jerusalém e Canções de inocência e de experiência. Morreu no dia 12 de agosto de 1827. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Cinco poemas de Paul Celan



Falar com os becos sem saída
sobre o de defronte
sobre sua
expatriada
significação – :
com dentes de escrever,
mastigar esse pão.

*

Um estrondo: a
própria verdade
surgiu entre
os homens
em pleno
turbilhão de metáforas

*

Sóis filiformes
sobre o ermo grisnegro.
Um pensamento
alto como uma árvore
agarra o somluz: ainda há
cantos a se cantarem para além
dos homens.

*

O mundo, mundo,
justificado em todos os peidos,
eu, eu,
contigo, tigo, to-
sado.


Nos rios ao norte do futuro
lanço a rede que tu,
hesitante, lastreias 
com sombras
escritas por pedras.

Paul Celan nasceu a 23 de novembro de 1920 em Cernăuţi. Profundamente apaixonado pela poesia, foi um prolífico tradutor deste gênero: mais de quatro dezenas de importantes nomes da literatura, como Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud, Charles Baudelaire, Aleksandr Blök, Emil Cioran, Emily Dickinson, Paul Éluard, Mallarmé, Marianne Moore, Paul Valéry, Fernando Pessoa. Um dos seus trabalhos de destaque é Arte poética: o meridiano e outros textos. Sobrevivente do Holocausto, Celan não conseguiu se curar das sequelas agravadas por esse pesado tempo e suicidou-se em Paris a 20 de abril de 1970. 


* Traduzidos por Celso Fraga da Fonseca e publicados inicialmente em Cadernos de Literatura em Tradução, n.4