terça-feira, 25 de agosto de 2015

Três poemas de Jaime Gil de Biedma



PARIS, POSTAL DO CÉU

Agora, vou contar-vos
como também estive em Paris, e fui ditoso.

Era nos bons tempos da minha juventude,
nos anos de abundância
do coração, quando deixar para trás os pais e a pátria
é sentir-se mais livre para sempre, e fui
no Verão, naquele Verão
da greve e das primeiras canções de Brassens,
e da formosa história
de quase amor.

Ainda vive na minha memória aquela noite,
recém-chegado. Contemplo ainda,
sob a Pont Saint Michel, pela mão, em silêncio,
a grande lua de Agosto suspensa entre as torres
de Notre Dame, e azul
de um impossível o rio tantas vezes sonhado
— It’s too romantic, como tu me disseste
ao afastar os lábios.

Em que sítio perdido
do teu país, em que recanto da América do Norte
e no quarto de quem, às horas mais soturnas,
quando sonhes morrer não importa em que braços,
e chegará, tal como
agora a mim me chega, esse calor de gentes
e a luz daquele céu tão rumoroso
tranquilo, sobre o Sena?

Como sonho vivido há muito tempo,
como aquela canção
desses dias, assim volta ao coração,
num instante, numa intensidade, a história
do nosso amor,
a confundir os dias e suas noites,
os momentos felizes,
as censuras

e aquela viagem — a caminho da cama —

num vagão do Metro Étoile-Nation.


PELO VISTO

Pelo visto é possível manifestar-se homem.
Pelo visto é possível dizer não.
De uma vez e na rua, de uma vez, por todos
e por todas as vezes em que não podemos.

Importa pelo visto o facto de estar vivo.
Importa pelo visto que até a injusta força
precise, admita nossas vidas, esses mínimos actos
cada dia na rua realizados por todos.

E será preciso não esquecer a lição:
saber, a cada instante, que no gesto que fazemos
há uma arma escondida, saber que estamos vivos
ainda. E que a vida
é possível ainda, pelo visto.


MANHÃ DE ONTEM, DE HOJE

É a chuva sobre o mar.
E à janela aberta,
contemplando-a descansas
a fronte na vidraça.

Imagens de uns segundos,

quieto no contraluz,
claro, teu corpo fulge,
inda pla noite nu.

E voltas-te para mim,

a sorrir-me. Eu penso
em como passou o tempo,
e recordo-te assim.


* As traduções são de José Bento e podem encontrar-se em Antologia Poética, 2ª edição revista e aumentada publicada por Edições Cotovia, Lisboa em 2003.