sexta-feira, 25 de março de 2016

Quatro poemas do livro "Letra aberta", de Herberto Helder

foto: Alfredo Cunha

oh que beleza sem gramática, que ferocíssimo esplendor:
rosa encarnada pelo ar acima
que é funda curva absurda,
rosa ascendida acesa desde a terra desmanchada,
escrita sobre o papel estrito
— e que o papel arda
que a extrema flor do cacto suba entre folhas espessas e coroas de espinhos,
mas que seja enfim mais peremptória ainda
a rosa irreversível

*

Não tenho nenhuma lei nem regra
para desordenar um poema escrito
não tenho mais que o desejo de tocar-te
ó coisa inúmera que entretanto
além de tocar
conto e reconto
continuadamente
fome de dizer como nunca foi
acontecido
fora do seu desejo mesmo tu
ó tão funda tão fundada
substância do mundo:
pleno cheio
serias sobretudo

como um voo ou como um ovo

*

a morte é mesmo estranha:
morre-se todos os dias
e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome
de outra vida,
e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de
nenhum país,
e não há ranhura onde a moeda entre,
nem a ranhura de uma velha caixa de música,
e no entanto estremeço
e falta-me o ar, sim sim
arrebatavam-me as músicas de J.S. Bach
no silêncio das naves através da catedral inteira
vozes e vozes dos rapazes castrados
e de repente um baixo monstruoso,
e isto se Deus existisse mesmo,
punhal fundo no músculo coração,
e depois quente choro pela cara abaixo
— oh porque me abandonaste?
mas na verdade ninguém me abandonara

*

às vezes ao meio da noite fica uma torneira aberta,
e a água corre e vai enchendo a tua própria noite,
?que fazer para não te afogares no sono,
que fazer para que te socorram,
que fazer para se não encher de água o mundo inteiro?
e entras em pânico
nada em Deus te pode sossegar porque já há muito
cancelaste os socorros divinos,
nada à tua volta porque fechaste o sono,
nada numa imagem porque fechaste a fonte tabuada de
imagens:
ao meio da noite às vezes desamparada mente
acordas, não acordas:
tão distante do mundo que o não tocas,
tão distante do socorro do mundo que não existe ninguém
em quem toques
— às vezes,
quando a tua água enche a noite e logo a fecha
por dentro pão bolorento
por fora corda de viola
corda de viola que ressoa

Herberto Helder nasceu em 1930 no Funchal. Estudo na terra natal até o 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A BriosaRe-nhau-nhauBúzioFolhas de PoesiaGraalCadernos do Meio-diaPirâmideTávola RedondaJornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários gêneros, mas sempre com maior afeição pela poesia; desta última forma, destacam-se livros como A colher na bocaPoemactoO bebedor noturnoOu o poema contínuo e A faca não corta o fogo. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prêmio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Três poemas de Helio Pellegrino



ALGUMA COISA

Para Guilhermino César

Alguma coisa resta: um gesto
nos tendões da mão engelhada.
Uma efusão inacabada
na ferrugem da pele-resto.

Alguma coisa que é da raça
dos minerais, insubornável,
além do amargo e do caroável,
do que perdura — e do que passa.

Alguma coisa inscrita: um grito
no fulgor do dedo anular.
Um puro incêndio sem queimar
— como um segredo afinal dito.

Porto Alegre, 8/11/86 


MAR ALTO

Esta água é todas as águas,
sem porto, nome ou naufrágio.
Rendada de espuma ao vento,
sem dor nem contentamento.

Esta água — lugar nenhum —
é perdição sem loucura.
Nela se dissolvem mágoa,
memória, tempo, aventura.

Sem lei nem rei, sem fronteiras,
além de verbo e silêncio,
esta é a pátria procurada:
incêndio de tudo  — nada.


A CEGUEIRA DE ÉDIPO

Caminha errante o velho rei da terra,
sangrando a cada passo o seu desterro.
Pesa-lhe luz demais, ausência de erro
e de noite — montanha que o soterra.

Cego de sua verdade, desenterra
do peito transfixado não o ferro
que o punge por inteiro, nem o berro
que lhe sobe das entranhas, enquanto erra.

Com sua garra terrosa de mendigo,
busca arrancar da carne não a morte
que o rodeia na treva, vinho forte

desde sempre provado. O desabrigo
que o atormenta é outro: sol candente
que vara a sua cegueira — e o faz vidente. 

terça-feira, 22 de março de 2016

Três poemas de Ulisses Tavares



BIOGRAFIA

quando sozinho, sofro.
com gente, finjo.
se amado, fujo.
amante, disfarço.
permanecendo, inquieto.
calado, penso.
pensando, calo.
tocado, tremo.
tocando, recuo.
vencedor, desinteresso.
vencido, odeio.
quase morto,
vivo assustado.
quase vivo,
morro de medo.


SEM SAÍDA

E agora, o que faço?
Fujo, tremo, desmaio?
Encaro o meu amor,
Ponto final, reticências ou traço,
Fico ou saio?


GOOD TRIP

ela me deu gás para
mudar tudo.
vamos pra Bahia,
ter filhos, plantar flores,
danças e longas fantasias
de mãos dadas.
se ela quiser,
viro punk,
e calmamente fico em Sampa
lavando as cuecas
e os sonhos no tanque.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Quatro poemas de Stéphane Mallarmé



BRINDE

Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.


BRISA MARINHA

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!

Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Rompam-se ao vento sobre, os náufragos, sem mas-
­Tros, sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!


SANTA

Numa janela vigilante      
O  sândalo que se desdoura
De sua viola cintilante
Outrora com flauta ou mandora,

A Santa pálida perante
O velho livro que se escoa
Do Magnificat evolante
Outrora em vésperas e noa:

Na vidraria de ostensório
Que a harpa noturna do Anjo plange
Das suas asas de velório
Para a delicada falange

Com que, sem sândalo afinal
E sem velho livro ela vence-o,
À plumagem instrumental,
Som, a música do silêncio.



Uma negra que algum duende mau desperta
Quer dar a uma criança triste acres sabores
E criminosos sob a veste descoberta,
A glutona se apresta a ardilosos labores:

A seu ventre compara alacre duas tetas
E, bem alto, onde a mão não se pode trazer,
Atira o choque obscuro das botinas pretas
Assim como uma língua inábil ao prazer.

Contra aquela nudez tímida de gazela
Que treme, sobre o dorso qual louco elefante
Recostada ela espera e a si mesma zela,
Rindo com dentes inocentes à infante.

E em suas pernas onde a vítima se aninha,
Erguendo sob a crina a pele negra aberta,
Insinua o céu torvo dessa boca experta,
Pálida e rosa como uma concha marinha.

Stéphane Mallarmé nasceu a 18 de março de 1842, em Paris. Sua carreira literária começa com publicações na revista Le Parnasse Contemporain. Autor de uma vasta e inovadora obra, se destaca como autor de livros como Um jogo de dados (1897), ponto alto na ruptura com os modelos tradicionais da poesia, e o volume de ensaios Divagações, editado também no mesmo ano. Morreu a 9 de setembro de 1898, em Seine-et-Marne.


* Traduções de Augusto de Campos

quarta-feira, 16 de março de 2016

Antologia reúne traduções inéditas de poemas de Allen Ginsberg



“pra quê mais ginsberg? pra quem mais ginsberg? ora, pra todos. pros poetas, é claro, que já estão lá atrás do sumo que mais importa nessa clareira da linguagem; mas é pra todos, sobretudo para os piores adictos” (Guilherme Gontijo Flores – prefácio a Allen Ginsberg: poemas)

Em agosto de 2014, foi publicada uma edição do Caderno-revista 7faces em homenagem a Allen Ginsberg. Não fosse o projeto que há algum tempo Cesar Kiraly desenvolvia, o de traduzir alguns dos poemas do poeta estadunidense, talvez este número do periódico nem tivesse saído a essa altura. Nela, foi publicado um conjunto de poemas, em espécie de amostra de um trabalho já quase pronto mas que ainda levou pelo menos quase dois anos de leituras e revisões. 

Allen Ginsberg: poemas é uma antologia organizada por Cesar Kiraly cuja importância se exibe desde a base de criação daquele número do Caderno-revista 7faces e expressa algumas das peças que assinalam o rico trabalho do autor de Howl and other poems no campo da poesia. É ainda uma amostra significativa para algumas das novas apostas encetadas pelos da sua geração: a liberdade criativa, a irreverência, a ironia, a relação direta entre o poético com as vivências, a exposição plena do corpo e das sexualidades subjugadas pelo status quo, a fuga do lugar-comum do bom-mocismo da sociedade, o revés do espírito hipócrita, a quebra das polarizações extremas num ambiente político marcado por um e outro grupo somente, a abertura de perspectivas outras sobre a relação com aspectos concernentes a existência – a relação com o outro, o amor, a morte etc. –, a saída definitiva de um universo de abstração formal para cantar a existência em seu pleno vigor, enfim, há aí uma pequena dose de tudo isso. Um mosaico, portanto, multifacetado de um poeta, de sua obra e do seu tempo. Ou uma porta de entrada no mundo-Ginsberg.

Para organização da antologia, Cesar Kiraly recolheu poemas desde o mais famoso livro de Allen Ginsberg, Howl, a outros títulos, como Kaddish, Reality Sandwiches, The Fall of America e Mind Breaths. É, portanto, outro ponto de um projeto cujas primeiras peças deu forma e foram apresentadas na edição 9 do Caderno-revista 7faces e ampliou-se com a leitura pública realizada no Rio de Janeiro no mesmo ano de 2014. A edição tem apresentação de Guilherme Gontijo Flores e imagens de Helton Solto. Clique aqui para acessar.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Dois poemas de Ramón Palomares



ENTRE O RIO

Para Eduardo Aray

Vou entrar em um rio
tiro a roupa e entre e abro a sua porta
e olho dentro de sua casa
e vou-me sentar nas cadeiras negras
e nos espelhos;
quando fale escuto o que diz e o que quer
e como manda em todos e diz que vai redemoinhar
e verei quando suas patas comecem a despedaçar a ladeira

Tomarei água de seu coração e beberei seu pescoço
e farei gargarejos e cuspirei dentro
e nos olhos colocarei pedras e retirarei os diamantes
e os pedaços de outro
e nos olhos porei uns gatos
e verei que vestido usa e como faz para correr
e se está dormindo escarvarei a ver que sonha.

Eu vi o que come o rio e vi sua mesa
e tinha pratos como goiabas podres e gado morto e casas
todas as semeaduras que levou
e um fio verde, bem verde, como um anjo.
Estive sentado a ver um grande campo que estava embaixo
e ali cantam todos e punham-se arroxeados
até que se ouviu uma voz fortíssima
e saíram igrejas e ruas das nuvens
e todos correram
e começou o rio a dizer que ia morrer.


* Tradução: Antonio Miranda


MÁSCARAS

Aqui que existimos no limiar da mentira
que nossa vida é impalpável
que estas pessoas representadas pertencem
a um dono de outra ordem.
Cumprimos integralmente uma cena
ante o grande público. Assim recriamos por sob os astros
e chegamos a um acordo no espaço
saindo do encalço dos nossas partidos.
Nosso coração está emprestado a outros personagens
murmuramos um sonho e nossos lábios não são responsáveis,
somos belos ou nobres segundo as circunstâncias.
Toma-nos um delírio incerto
e caímos nos cenários sob uma vontade estranha.
E não temos vida,
pois andamos sobre rodas de um país desconhecido
cujas flores nos interessam de maneira frívola
e cujas mulheres nos amam em alcovas de falsidade.
Produzimos um fogo e seu coração azul
crepita com mais força que o nosso
enquanto ardem a madeira à maneira de sangue.
Permitimo-nos ser estrangeiros. Falsos.
Levar uma emoção não sincera.
Enquanto andamos, desterrados de nosso corpo
num interminável passeio.

* Traduzido por Pedro Fernandes




sexta-feira, 11 de março de 2016

Dois poemas de Cacaso



HORA DO RECREIO

O coração em frangalhos o poeta é
levado a optar entre dois amores.

As duas não pode ser pois ambas não deixariam
uma só é impossível pois há os olhos da outra
e nenhuma é um verso que não é deste poema

Por hoje basta. Amanhã volto a pensar neste problema. 


POÉTICA

       Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes:          o feto
                  fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.

Rio de Janeiro, 1965.

Cacaso nasceu a 13 de março de 1944 em Uberaba, Minas Gerais. Cedo foi morar no Rio de Janeiro, onde viveu o restante da sua vida. Estudou Filosofia, foi professor na PUC e colaborador regular de várias revistas e jornais. Foi um dos nomes da chamada geração mimeógrafo e ganhou destaque na antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda. Publicou o primeiro livro em 1967, A palavra cerzida. Depois, vieram outros cinco títulos: Grupo escolar (1974), Beijo na boca e Segunda classe (1975), Na corda bamba (1978) e Mar de mineiro (1982). Morreu a 27 de dezembro de 1987. 




terça-feira, 8 de março de 2016

Um poema inédito de Cecília Meireles



RIMANCES DAS DONAS DE PORTUGAL

Este é o singelo rimance
Por onde ha-de ir, bem ou mal,
Uma palavra de alcance,
Ainda que de relance,
As Donas de Portugal.
Do Portugal pequenino,
Mapa ainda em formação,
Entre os dedos do destino
Que o tirou como a um menino
De dentro do coração...

...Tempo de antanho indeciso,
Quando o tropel das pelejas
Mata ou exalta de improviso...
Paira sôbre êle o sorriso
Das Urracas e Tarejas.
Enquanto Portugal cresce,
Enquanto a conquista escalda,
Detrás da luta aparece
O vulto, que se esmorece,
De alguma Aldonça ou Mafalda...

Figuras mansas, de escassos
Perfis, sem côres nem brilhos.
Postas nos salões dos paços
Entre harpas de timbres lassos
E encantos de remedilhos
Graça dos tempos distantes.
Dos amigos alongados,
Em que se contam instantes
Da ausência dos inconstantes
Falando aos pinos calados.

Tempos de trovas discretas...
Sanchas, Brancas, Leanores...
Quando havia reis poetas
Que, com falas incompletas,
Iam trovando de amores...
E, entre místicas infantas,
De figuras nebulosas,
Assim, ó tempo, levantas,
Rostos de rainhas-santas
Que mudavam pães em rosas...

Outros rostos vêm à tona...
Vêm nas águas do Mondego...
Uma Dona e outra Dona...
E é o fado que as abandona,
Perdidas no seu socêgo...
“Eu era moça e menina,
Por nome, D. Inês...”
Era uma vez uma sina...
Mais uma espada assassina...
E um príncipe... Era uma vez...

Ó coração que sempre amas!
Ó amor, que à desgraça impéles...
Como um sol de estranhas flamas,
Entre as suas nobres damas,
Aparece Leonor Teles.
D. Filipa descerra,
Do alto, a nova dinastia,
Que, após os feitos de guerra,
Há de sonha algum dia
Com a forma oculta da terra...

E este cantar se abandona
Ao gôsto de recordar
A primeira triste Dona
De olhos postos sôbre o mar
Que os navios aprisiona...
Cada noiva real, preciosa...
E cada infanta suave, e cada
Princesa, mais que uma rosa
Sensível e delicada...
E Joana, “desesperada,
Mui triste... muito chorosa...”

No tempo de náus e velas...
No paço se encontrarão
Brites e Marias belas
E a luz que se anima entre elas,
de Francisca de Aragão...
Romabisa... Aonia... Sombria
Estrada de Pastoral...
Ai de quem te viu um dia!
(“A ela chamavam Maria
E ao pastor Crisjal...”)

Serranas vão para os montes.
Poetas vão para naufrágios,
Bem além dos horizontes...
E o amor fez de olhos fontes
Com água de velhos presságios...
Anda vagando pelo ar
Natércia, desconhecida...
Lereno oferece a vida
A alguém que lhe queira dar
Uma esperança perdida...

Pastorinhas encantadas...
Passam rebanhos, sanfonas...
Amadas e desamadas.
Misteriosas, tristes Donas...
E as Donas belas ou feias
Que não teve o Sonhador
Que ao seu sonho as fez alheias,
Namorado das areias
Onde, emfim, morreu de amor...

Madalena de Vilhena
Rompe os espaços, demente,
E o ar se enche de estrenha cena
Em que o fantasma lhe acena
Com gestos de antigamente...
Mas a tréva é iluminada
E o grande horror se dissipa
Quando, empunhando uma espada,
Arma os filhos, clama e brada,
A, de Vilhena, Filipa.

O rimance encontra agora,
Como um pássaro no dia,
Donas em que o sonho mora
Vestido de nostalgia...
Velhos nomes de convento:
Violante do Céo... Leonarda...
E aquela em que o sentimento
Faz da desgraça alimento.
– Mariana, a que Deus não guarda...

E as musas passam veladas...
Sono de mágua e desengano...
Mortas figuras caladas...
Grandes paixões torturadas
Unindo Garret a Elmano...
Donas tôdas silenciosas,
Que valeram o universo,
Que nunca foram ditosas,
E morreram como rosas
Dando perfume a algum verso...

Donas mórbidas, vestindo
Seus trajes de cemitério,
E pôndo um sorriso lindo
– Para o fazer mais infindo –
Sobre seu grande mistério...
Donas de pálido rosto,
De violáceas olheiras,
Contemplando, no sol posto,
Tecer-se o véu do desgôsto
Pelas nuvens – fiandeiras...

E as donas que não tiveram
Sua morada nos paços...
Que entre monte e val nasceram,
E em val e monte viveram,
Namoradas dos espaços...
Que encheram da côr dos astros
A ânfora clara do olhar,
E sonharam náus e mastros,
E choraram sôbre os rastros
Dos filhos dados ao mar...

Donas simples, donas fortes,
Donas mortas, donas vivas,
Donas de diversas sortes,
Donas humildes e altivas,
Descuidadas, pensativas,
– Este rimance foi feito,
Donas! Para vos saudar.
Em cada verso imperfeito
O coração toma o geito
De uma vela a navegar...

Sóis tôdas aqui presentes,
Donas de antanho r de agora,
Da estirpe daquelas gentes
De largos sonhos ardentes
Partidos por mar afóra.
Gentes de perpétua lenda,
Que se fizeram assim
Como que se aprenda
Que a sua vida é uma senda
Para rimances sem fim...

Cecília Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro, cidade onde passou toda sua vida e de onde saiu para muitas viagens: nos anos quarenta para os Estados Unidos, onde deu palestras na Universidade do Texas, em seguida, México, Argentina, Uruguai, Chile... Professora e profunda interessada nas questões sobre educação no Brasil, Cecília começou sua carreira literária com a publicação de Espectros, em 1919. Depois desse livro se desenvolveu uma extensa bibliografia que transita entre a poesia, gênero que lhe deu reconhecimento, e na prosa. Morreu no dia 9 de novembro de 1964. 


* “Rimance das Donas de Portugal” foi escrito em 1931, quando a poeta foi convidada para participar da Festa do Centro do Minho realizada no Rio de Janeiro. O texto foi publicado na revista Lusitania que circulava entre os da comunidade portuguesa. A descoberta é do professor Ulisses Infante, da UNESP-São José do Rio Preto enquanto procurava informações sobre a primeira viagem da poeta a Portugal. Publicado inicialmente no Estadão.