sexta-feira, 27 de maio de 2016

Três poemas de Arseni Tarkóvski



VIDA, VIDA

Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.

Vive na casa e a casa continua de pé
Vou aparecer em qualquer século
Entrar e fazer uma casa para mim
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o avô e o neto
O futuro é consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais

Escolhi uma era que estivesse à minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaçais cresciam viçosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Ereto sobre meus estribos como um garoto.

Só preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
Não me puxasse pelo mundo como uma linha.

* Tradução de Jefferson Luiz Camargo.


O VERÃO PARTIU

O verão partiu
e nunca devia ter vindo
será quente o sol
mas não pode ser só isto

tudo veio para partir
nas minhas mãos tudo caiu
corola de cinco pétalas
mas não pode ser só isto

nenhum mal se perdeu
nenhum bem foi em vão
à luz clara tudo arde
mas não pode ser só isto

agarra-me a vida
sob a sua asa intacto
sempre a sorte do meu lado
mas não pode ser só isto

nem uma folha se consumiu
nem uma vara quebrada
vidro límpido é o dia
mas não pode ser só isto


EURÍDICE

Temos um só corpo
singular, solitário
a alma teve que baste
ali dentro fechada
caixa com olhos e orelhas
do tamanho de um botão
e a pele – costura após costura –
cobrindo a estrutura óssea

sai da córnea voando
para o cálice celeste
para o gelado raio
da roda voadora das aves
e escuta pelas grades
da sua cela viva
o crepitar do bosque e da seara
e a trombeta dos sete mares

corpo sem alma é pecado
é um corpo sem camisa
nada feito sem intenção
sem inspiração, nenhuma linha
insolúvel charada:
quem no fim irá voltar
à pista de dança quando
ninguém houver para dançar?

sonhei com uma alma outra
de um modo outro vestida:
ardia na fuga
da timidez à esperança
espirituosa e límpida
como o fogo habita a terra
sobre a mesa pondo lilases
para que lembrada seja

corre, criança, não pares
pela pobre Eurídice
rola o arco e a gancheta
no mundo roda
até subires uma oitava
no tom alegre, e calma
porque a cada passo a terra
faz soar guizos nos teus ouvidos


* Traduções de Paulo da Costa Domingos, publicada na revista escamandro.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Dois poemas de Goethe



O DIVINO

Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conhecemos.

Glória aos incógnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhe iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer neles!

Pois insensível
É a natureza:
O sol ‘spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A luz e as ‘strelas.

Vento e torrentes,
Trovão e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um após outro.

Tal a sorte às cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.

Por eternas leis,
Grandes e de bronze,
Temos todos nós
De fechar os círculos
Da nossa existência.

Mas somente o homem
Pode o impossível:
Só ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.

Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,
Curar e salvar,
Unir com proveito
Tudo o que erra e divaga.

E nós veneramos
Os Imortais
Como se homens fossem,
Em grande fizessem
O que em pequeno o melhor de nós
Faz ou deseja.

Que o homem nobre
Seja caridoso e bom!
Incansável crie
O útil, o justo,
E nos seja exemplo
Dos seres pressentidos.


CANTO DOS ESPÍRITOS SOBRE AS ÁGUAS


A alma do homem 
É como a água: 
Do céu vem, 
Ao céu sobe, 
E de novo tem 
Que descer à terra, 
Em mudança eterna. 

Corre do alto 
Rochedo a pino 
O veio puro, 
Então em belo 
Pó de ondas de névoa 
Desce à rocha liza, 
E acolhido de manso 
Vai, tudo velando, 
Em baixo murmúrio, 
Lá para as profundas. 

Erguem-se penhascos 
De encontro à queda, 
— Vai, 'spúmando em raiva, 
Degrau em degrau 
Para o abismo. 

No leito baixo 
Desliza ao longo do vale relvado, 
E no lago manso 
Pascem seu rosto 
Os astros todos. 

Vento é da vaga 
O belo amante; 
Vento mistura do fundo ao cimo 
Ondas 'spumantes. 

Alma do Homem, 
És bem como a água! 
Destino do homem, 
És bem como o vento! 

* Traduções de Paulo Quintela.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Um poema de Antonio Colinas



PARA A FIGURA DE UM CRISTO ACHADA ENTRE O LIXO DE UM ESTÁBULO

Não estavas nas neves imensas dos montes,
na neve que ardia em seu silêncio;
nem no clamor feliz dos nossos gritos
além no mais profundo dos bosques.

Não te pude encontrar tal como és
nos versos da pobreza e da piedade de Rilke,
que lia de noite à luz da vela;
nem no Nascimento Místico de Sandro Botticelli,
que, desde que o vi, não deixa de viajar na minha memória
com sua coroa de anjos,
como viaja uma fogueira, e a vai adormecendo;
nem na tormenta ou na loucura formosa
da ebriedade de Bach.

Não estavas na ermida fechada a cal e canto,
calada na ladeira como lábios dum anjo
por dedo de silêncio.
Nem estavas na casa de pedra da aldeia
que, no fim dos vales, nos deixaram
naquele fim de semana.

Não estavas nem sequer no amor
dos meus, dulcíssima
coroa de sangue em torno da mesa;
nem naquela ramagem
de mãos que estendíamos para o lume aceso.
(A oferenda de nos amarmos entregue pelas chamas!)
Nem sequer estavas na hóstia
vermelha que era a lareira da cozinha.

Tu estavas fora, por trás da janelita
com musgo e com orvalho,
por trás dos objectos mortos da arrecadação,
depois do horto envolto
em névoa, por trás dos olhos medrosos,
lastimosos, da cadela.

Fui entrando no estábulo
onde há muitos anos ninguém penetrava.
E não conseguia perceber por que o fazia.
E na palha mole e ressequida
do chão, no lixo morto,
o meu pé tropeçou em algo.

Era um pequeno braço de bronze o que assomou,
e nele uma mãozinha se agarrava
(não sei se com terror se com doçura)
a um cravo afiado.

Devagar, agachei-me para agarrar
o cravo frio (aquele que eu cria
que abrasava).
E fui tirando aquela mão e aquele braço
até que vi sair (com uma mancha
de sangue sobre o peito)
a cabeça e o corpo de um Cristo sem a sua cruz.

Já libertado do lixo,
aquele corpo de bronze parecia
tremer sobre a minha mão
como um pássaro tíbio.
E contemplei os seus pés, seus braços estendidos,
cravados na luz
de ouro do estábulo.

* Tradução de Ruy Ventura


sexta-feira, 13 de maio de 2016

Três poemas de Raimundo Correia



AMOR E VIDA

Esconde-me a alma, no íntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.

A crua e rija lâmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
Só findará quando findar-me a vida!

Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu álgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!

E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ó meu sacro, ó meu único tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!


A CAVALGADA

A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta,
A lua a estrada solitária banha...


O MISANTROPO

A boca, às vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.

Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!

Porque, desde que esse ódio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?

Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!


segunda-feira, 2 de maio de 2016

Quatro poemas inéditos de Günter Grass



SER LIVRE COMO UMA AVE

Quando o coração, os pulmões e rins
do fumador de cachimbo o obrigaram a ir à oficina
uma e outra vez e cada vez mais, onde ficou,
como mísero eu, ligado aos tubos
e obrigado a engolir um crescente montículo
de comprimidos coloridos, redondos e alongados
que sussurravam as legendas dos seus efeitos secundários;
quando a velhice insistente e obstinada lhe colocou
as questões “Quanto tempo ainda?” e “Valerá mesmo a pena?” e
não lhe saíam da mão nem imagens traçadas nem palavras
alinhadas; quando o mundo com as suas guerras e danos
colaterais se lhe escapou e ele já só o sono buscava,
fragmentado e aos pedaços – distante já de si e lamuriento,
pôs-se a lamber as feridas –; quando também a derradeira fonte
tinha já secado, umedeceu-me, como se ainda
houvesse aquela respiração direta de boca a boca, o beijo
de uma musa em atividade subsidiária; e logo surgiram
imagens acossadas pelas palavras, ficaram à mão o papel
e o lápis e o pincel e a outonal natureza mostrou
a sua caduca oferta, fazendo fluir da aquarela a aguada,
e logo me pus a rabiscar com gozo e, temendo a recaída,
recomecei, ávido, a viver.
Sentir-me. Leve como uma pena, livre como uma ave,
se bem que há muito pronto a ser abatido. Sem vergonha
soltar a trela ao bicho. Tornar-me neste e naquele.
Ressuscitar os mortos. Mascarar-me com os trapos
do meu companheiro Baldanders. Perder-me com toda a
determinação. Procurar refúgio por detrás dos riscos
do próprio sombreado. Dizer agora!
Senti-me como se pudesse mudar de pele, encontrar o fio,
soltar o nó, como se o achado felicidade tivesse ainda um nome
repetível.


EM RENOVADA FOLHA

Com giz vermelho, lápis, grafite,
com traço de tinta e pena de ave,
aparos afiados, farto pincel
e carvão das florestas da Sibéria,
com sobrepostas aguadas de aquarela,
para logo voltar ao branco e ao negro –
inseridos numa escala de sombreados –
destacando o brilho prateado da sombra;
e desde que do sono já da morte tão próximo
o beijo da musa me espantou
e nu me atirou e em pelo para a claridade,
quero, em sempre renovada folha,
pelo amarelo obcecado, como que pela luz
de um campo de colza anestesiado,
tenciono inflamar o vermelho
e pelo outono tingido, esperando ainda
que novamente renasça o verde,
procurar a saída, suspenso e leve
como penas que do azul caem.


ORAÇÃO DE TODAS AS NOITES

O que em criança até à ereção do membro
me assustava podia ler-se
como lema em cada muro em Sütterlin:
“Deus tudo vê”; agora, porém – desde que
Deus está morto –, descreve lá em cima
os seus círculos
um drone não tripulado
que, sem pestanejar, nunca dorme
e me tem debaixo d’olho e tudo
armazena e nada consegue esquecer.

E já de novo infantil sou
e gaguejo incompletas preces,
quero implorar a clemência e o perdão
como outrora os meus lábios,
à hora de ir para a cama,
após cada pecado original,
suplicavam indulgência.
E no confessionário ouço-me sussurrar:
Oh, querido Drone,
torna-me crente,
ajuda a salvar
quem mente.


CORREIO DE CARACOL

Escrever longas cartas a amigos mortos
e breves e lamentosas à amante
há muito descarnada,
e outras legíveis, sem arabescos,
com frases que meandram aproximadamente,
não, incisivas, afiadas,
capazes até de o tempo perfurar,
como se nem um instante tivesse passado.

Mas também o evanescente agora
e a pressa e o tédio
quero como testemunha apaixonada
pelas palavras relatar,
descrever o curso da bolsa,
a geral atração pela queda,
e no que os filhos se tornaram, e tornam,
e com quantos netos fui entretanto brindado,
quais as palavras que estão na moda
e as que caíram em desuso e há muito desapareceram.

Oh, que falta me fazem os amigos mortos
e a amante, cujo nome perdura ainda
fresco e infinitamente repetível
no secreto compartimento.
Por resposta quero esperar
até que todas as manhãs o vento
me largue à porta, densamente preenchidas
e desordenadas, as folhas do outono.

Também distingo caracóis
que nas rotas postais se afadigam,
de muito longe vêm vindo,
há já anos que o seu trânsito dura;
e a mim vejo-me todas as noites
a decifrar pacientemente
o seu viscoso rasto
e a ler o que o amigo morto
e a amante me escreveram.


* Tradução João Bouza da Costa