quinta-feira, 28 de abril de 2016

Um poema de "Omeros", de Derek Walcott



Capítulo I

I
“Foi assim que, num amanhecer, nós talhamos aquelas canoas.”
Philoctete sorri para os turistas, que com suas máquinas fotográficas
tentam tirar sua alma. “Logo que o vento traz a notícia

para os laurier-cannelles, suas folhas se põem a tremer
no instante em que o machado da luz do sol fere os cedros,
porque podiam ver os machados em seus próprios olhos.

O vento levanta as samambaias. Soam como o mar que alimenta a nós
pescadores durante a vida inteira; e as samambaias se curvaram: Sim,
as árvores têm que morrer! Assim, punhos premidos nos paletós —
porque estava frio nas alturas — e a respiração fazendo plumas
como a névoa, passamos o rum. Quando voltou, a bebida deu
ânimo para a gente se tornar assassinos.

Eu ergo o machado e rezo por força nas mãos,
para ferir o primeiro cedro. O orvalho me enchia os olhos,
mas atiro mais um rum branco. Então avançamos.”

Por algum dinheiro extra, sob uma amendoeira marinha,
ele lhes mostra uma cicatriz feita por uma âncora enferrujada,
enrolando uma perna das calças com o lamento ascendente
de uma concha. Ela ficou enrugada como a corola
de um ouriço-cacheiro. Não explica a sua cura.
“Tem coisas”, sorri, “que valem mais do que um dólar.”

Desde que os altos loureiros tombaram, ele deixou que uma loquaz
catarata derramasse o seu segredo do cimo do La Sorcière, deixou
que o grito de acasalamento da pomba-do-mato

passasse a sua nota aos tácitos montes azuis,
cujos regatos tagarelas, ao levá-la para o mar,
se tornam charcos preguiçosos, onde os claros peixinhos disparam

e uma garça-real espreita os juncos com um grito rouco,
enquanto fura e perfura a lama com um pé a se erguer.
Depois o silêncio é serrado ao meio por uma libélula,

e enguias assinam seus nomes pela areia clara do fundo,
quando a aurora ilumina a memória do rio
e ondas de samambaias enormes se agitam ao som do mar.

Embora a fumaça esqueça a terra de onde ela ascende
e urtigas guardem os buracos em que os loureiros morreram,
um iguano ouve os machados, toldando cada lente

sobre seu nome perdido, quando a ilha corcovada se chamava
“Iounalao” — “Onde o iguano se encontra”.
Mas, sem pressa, o iguano irá escalar

o cordame das lianas num ano, sua barbela em leque,
seus cotovelos nos quadris, sua cauda vagarosa
a mover-se com a ilha. As vagens fendidas de seus olhos

amadureceram numa pausa que durou séculos,
que se ergueu com a fumaça dos arauaques até que uma nova raça
desconhecida do lagarto se pôs a medir as árvores.

Estas eram os seus pilares que tombaram, deixando um espaço azul
para um Deus único onde antes os velhos deuses se postaram.
Foi o primeiro deus uma gomeira. O gerador

começou com um ganido; e um tubarão, de mandíbula enviesada,
mandou lascas que voavam quais cavalas sobre as águas
para dentro de ervas trêmulas. Agora desligam a serra,

ainda quente e trepidante, para examinarem a ferida que
fizera. Rasparam o seu musgo gangrenoso, depois arrancaram
a ferida da rede de lianas que ainda a prendia

a esta terra, e fizeram sinal com a cabeça. O gerador chicoteou de volta ao trabalho, e as lascas voaram mais depressa ainda, enquanto
os dentes do tubarão roíam por igual. Eles cobriam os olhos

ante o ninho estilhaçante. Agora, sobre as pastagens
com bananeiras, a ilha levantava seus chifres. A aurora escoou por seus vales, o sangue se espalhou sobre os cedros,

e o bosque inundou-se com a luz do sacrifício.
Uma gomeira estalava. Suas folhas uma enorme
lona que perdera o suporte central. O som rangente

fez que os pescadores saltassem para trás, enquanto o mastro oblíquo
se inclinava devagar sobre os leitos das samambaias; depois o chão
tremeu em ondas sob os pés; depois as ondas passaram.

II

Achille ergueu os olhos para o buraco que o loureiro havia deixado.
Viu o buraco sarando silencioso com a espuma de uma nuvem
qual vaga a se quebrar. Depois viu o andorinhão

cruzando a rebentação de nuvens, uma coisa de nada, longe do lar, confundido pelas ondas de colinas azuladas. Um espinheiro agarrou
seu calcanhar. Livrou-o com um puxão. À volta dele, outros barcos

tomavam forma com a serra. Com seu facão ele fez
um rápido sinal da cruz, o polegar tocando os lábios,
enquanto a altura ressoava com machados. Ergueu de novo a lâmina,

 e amputou os membros do deus morto, nó por nó
arrancando as veias separadas do corpo enquanto rezava:
“Árvore! Você poderá ser uma canoa! Ou então não!”.

Os anciãos barbados suportavam a dizimação
de sua tribo sem proferirem uma sílaba sequer
daquela língua que haviam falado como uma nação,

a língua ensinada aos rebentos: do altaneiro rumorejo d
o cedro até as verdes vogais do bois-campêche.
O bois-flot se calou com o laurier-cannelle,

o pau-campeche pele-vermelha suportou na carne os espinhos,
enquanto o patois dos arauaques estalava no cheiro
de uma fogueira resinosa, que tornava as folhas pardas,

com suas línguas se enrolando, depois as mudava em cinza, e sua fala se perdia.
Como bárbaros galgando colunas que haviam derribado,
os pescadores gritavam. Os deuses finalmente estavam caídos.

Como pigmeus, cortavam as trombas de gigantes enrugados
por pagaias e remos. Trabalhavam com a mesma concentração
que um exército de formigas lava-pés.

Mas revoltadas com a fumaça, por malsinar sua floresta,
dardejantes rajadas de mosquitos agulhavam o tronco de Achille.
Ele esfregou rum branco nos dois antebraços para que, ao menos,

os que esmagasse em asteriscos morressem bêbados.
Os pernilongos buscaram seus olhos. Rodeavam-nos com ataques
que o faziam chorar às cegas. Depois a hoste se retirou

para elevado bambuzal, como arqueiros arauaques
fugindo dos mosquetes das toras que se rachavam, dispersa
pela bandeira do fogo e o machado sem remorso

que amputava os galhos. Primeiro os homens ataram as grandes toras
com cânhamo novo, e, como formigas, as rolaram para um penhasco
para um mergulho entre as altas urtigas. As toras congregavam aquela sede

pelo mar que era inata em seus corpos enredados nas lianas.
Agora os troncos no anseio de se tornarem canoas
sulcavam rebentações de arbustos, fazendo das rochas

feridas abertas, não sentindo a morte dentro deles, mas o uso...
seriam quilhas, o teto do mar. Então, na praia, colocaram-se
carvões em seus ocos desbastados por enxó.

Um caminhão de carroceria aberta carregou seus corpos atados por cordas.
Os carvões, fumegando, carcomeram por dias os lenhos cavados,
até que o calor os alargou para serem amuradas com balizas.

Sob as batidas do cinzel Achille sentiu que seus ocos
anelavam tocar o mar, arremetendo rumo à bruma de
ilhotas estampadas-por-pássaros, os bicos de suas proas separadas.

E então tudo pronto. As pirogas se encolhiam na areia
como cães com gravetos nos dentes. O padre
com um sininho as salpicou, depois fez o sinal do andorinhão.

Quando ele sorriu ao ver a canoa de Achille. Em Deus Confilamos,
disse Achille: “Deixe! É minha grafia e a de Deus”.
Numa aurora após a missa as canoas entraram nos leitos

dos baixios paramentados, e suas proas cabeceantes
concordaram com as ondas em esquecer suas vidas como árvores;
uma serviria Heitor, e uma outra, Aquiles.

III

Achille espiou a escuridão, e trancou com o ferrolho a meia-porta.
O ar marinho a enferrujara. Içou a armadilha de pesca
com o caranguejo de uma das mãos; no buraco sob a cabana

escondeu o degrau, um bloco de lava endurecida. Ao se aproximar do depósito,
salgava-o a brisa da aurora subindo a rua cinza
por casas ferradas no sono, sob as colunas de sódio

das lâmpadas dos postes, até o asfalto seco que seus pés raspavam;
ele ia contando as pequenas centelhas azuis de estrelas apartadas.
As frondes das bananeiras se curvavam acompanhando a cólera

ondulante dos galos, seus gritos arranhando como giz vermelho
que desenha colinas numa lousa. Como seu professor, à espera,
a rebentação se impacientava com seu passo vagaroso.

Pela hora em que se encontraram junto à parede do galpão de concreto,
 a estrela-d’alva já se retirara, detestando o odor
de redes e tripas de peixe; a luz no alto era dura

e havia um horizonte. Ele colocou a rede junto à porta
do depósito, depois lavou as mãos na pia.
A rebentação não ergueu a sua voz; mesmo os cães só costelas

estavam quietos em volta das canoas; uma garrafa de absinto
circulou entre os pescadores, que faziam sons de estalidos
e estremeciam com a casca amarga de que fora fermentado.

Era nessa luz que mais feliz Achille se sentia.
Quando, antes de suas mãos agarrarem a amurada, eles se preparavam
para que a vastidão do mar entrasse neles, sentindo começar o seu dia.

Derek Walcott nasceu a 23 de janeiro de 1930, em Castries, ilha de Santa Lucia. Foi poeta, dramaturgo e ensaísta. Formou-se na Universidade das Índias Ocidentais, na Jamaica, e em 1957 obteve uma bolsa para estudar teatro nos Estados Unidos. Em 1992, tornou-se o primeiro escritor caribenho a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Viveu em Londres e em Trinidad, e durante muitos anos dividiu seu tempo entre a ilha de Santa Lucia e os Estados Unidos, onde lecionou na Universidade de Boston até se aposentar, em 2007. Da vasta obra que deixou publicada, destaca-se o poema Omeros (1990). Derek Walcott morreu a 17 de março de 2017.



* Tradução de Paulo Vizioli