segunda-feira, 2 de maio de 2016

Quatro poemas inéditos de Günter Grass



SER LIVRE COMO UMA AVE

Quando o coração, os pulmões e rins
do fumador de cachimbo o obrigaram a ir à oficina
uma e outra vez e cada vez mais, onde ficou,
como mísero eu, ligado aos tubos
e obrigado a engolir um crescente montículo
de comprimidos coloridos, redondos e alongados
que sussurravam as legendas dos seus efeitos secundários;
quando a velhice insistente e obstinada lhe colocou
as questões “Quanto tempo ainda?” e “Valerá mesmo a pena?” e
não lhe saíam da mão nem imagens traçadas nem palavras
alinhadas; quando o mundo com as suas guerras e danos
colaterais se lhe escapou e ele já só o sono buscava,
fragmentado e aos pedaços – distante já de si e lamuriento,
pôs-se a lamber as feridas –; quando também a derradeira fonte
tinha já secado, umedeceu-me, como se ainda
houvesse aquela respiração direta de boca a boca, o beijo
de uma musa em atividade subsidiária; e logo surgiram
imagens acossadas pelas palavras, ficaram à mão o papel
e o lápis e o pincel e a outonal natureza mostrou
a sua caduca oferta, fazendo fluir da aquarela a aguada,
e logo me pus a rabiscar com gozo e, temendo a recaída,
recomecei, ávido, a viver.
Sentir-me. Leve como uma pena, livre como uma ave,
se bem que há muito pronto a ser abatido. Sem vergonha
soltar a trela ao bicho. Tornar-me neste e naquele.
Ressuscitar os mortos. Mascarar-me com os trapos
do meu companheiro Baldanders. Perder-me com toda a
determinação. Procurar refúgio por detrás dos riscos
do próprio sombreado. Dizer agora!
Senti-me como se pudesse mudar de pele, encontrar o fio,
soltar o nó, como se o achado felicidade tivesse ainda um nome
repetível.


EM RENOVADA FOLHA

Com giz vermelho, lápis, grafite,
com traço de tinta e pena de ave,
aparos afiados, farto pincel
e carvão das florestas da Sibéria,
com sobrepostas aguadas de aquarela,
para logo voltar ao branco e ao negro –
inseridos numa escala de sombreados –
destacando o brilho prateado da sombra;
e desde que do sono já da morte tão próximo
o beijo da musa me espantou
e nu me atirou e em pelo para a claridade,
quero, em sempre renovada folha,
pelo amarelo obcecado, como que pela luz
de um campo de colza anestesiado,
tenciono inflamar o vermelho
e pelo outono tingido, esperando ainda
que novamente renasça o verde,
procurar a saída, suspenso e leve
como penas que do azul caem.


ORAÇÃO DE TODAS AS NOITES

O que em criança até à ereção do membro
me assustava podia ler-se
como lema em cada muro em Sütterlin:
“Deus tudo vê”; agora, porém – desde que
Deus está morto –, descreve lá em cima
os seus círculos
um drone não tripulado
que, sem pestanejar, nunca dorme
e me tem debaixo d’olho e tudo
armazena e nada consegue esquecer.

E já de novo infantil sou
e gaguejo incompletas preces,
quero implorar a clemência e o perdão
como outrora os meus lábios,
à hora de ir para a cama,
após cada pecado original,
suplicavam indulgência.
E no confessionário ouço-me sussurrar:
Oh, querido Drone,
torna-me crente,
ajuda a salvar
quem mente.


CORREIO DE CARACOL

Escrever longas cartas a amigos mortos
e breves e lamentosas à amante
há muito descarnada,
e outras legíveis, sem arabescos,
com frases que meandram aproximadamente,
não, incisivas, afiadas,
capazes até de o tempo perfurar,
como se nem um instante tivesse passado.

Mas também o evanescente agora
e a pressa e o tédio
quero como testemunha apaixonada
pelas palavras relatar,
descrever o curso da bolsa,
a geral atração pela queda,
e no que os filhos se tornaram, e tornam,
e com quantos netos fui entretanto brindado,
quais as palavras que estão na moda
e as que caíram em desuso e há muito desapareceram.

Oh, que falta me fazem os amigos mortos
e a amante, cujo nome perdura ainda
fresco e infinitamente repetível
no secreto compartimento.
Por resposta quero esperar
até que todas as manhãs o vento
me largue à porta, densamente preenchidas
e desordenadas, as folhas do outono.

Também distingo caracóis
que nas rotas postais se afadigam,
de muito longe vêm vindo,
há já anos que o seu trânsito dura;
e a mim vejo-me todas as noites
a decifrar pacientemente
o seu viscoso rasto
e a ler o que o amigo morto
e a amante me escreveram.


* Tradução João Bouza da Costa