segunda-feira, 8 de maio de 2017

Três poemas de Jerzy Ficowski



Não consegui salvar
nem uma vida

não soube deter
nem uma bala

então percorro cemitérios
que não existem
busco palavras
que não existem
corro

para o socorro não pedido
para o resgate tardio

quero chegar a tempo
mesmo que tarde demais

*

Muranów se ergue
sobre as camadas do morrer
a fundação apoiada em osso
os porões nas valas
esvaziadas de gritos

Foi ou não foi está como está

Há uma calmaria de gemidos removidos
halo negro do fogo defunto
Muranów fortemente plantado
na sepultura da memória
a maioria das cartas chega

Foi ou não foi está como está

E eu como ele elevado
até a superfície das cinzas
sob as estrelas de vidro estilhaçado

Foi ou não foi está como está

eu queria apenas calar
mas calando minto

eu queria apenas andar
mas andando pisoteio


CARTA A MARC CHAGALL

I

Que pena que o senhor não conheceRosa Gold,
a mais triste rosa dourada.
Ela só tinha sete anos, quando acabou essa guerra.
Não a vi nunca,
mas ela não tira os olhos de mim.
Duas vezes as neves derreteram sobre aqueles olhos,
duas mil vezes morreram
os olhos de seis anos de Rosa Gold.

Meu irmão saiu de noite, bebeu água de uma poça e morreu. Nós o enterramos no bosque, no meio da noite. Uma vez o tio saiu do abrigo e nunca mais voltou. Ficamos escondidos assim 18 meses, até que chegaram os russos. Não sabíamos andar e até hoje temos pernas fracas. E Rosa está sempre triste, chora com frequência e não quer brincar com as outras crianças.

Que bom que o senhor não conhece Rosa Gold!
Explodiriam em fumaça os cachos de lilases, nos quais deitam os enamorados.
A rabeca do músico verde lhe cortaria a garganta.
O portão do cemitério judeu voltaria ao pó
ou sufocaria no mato de tijolos daninhos.
A tinta carbonizaria as telas.
Pois o último, o mais horripilante grito
é sempre apenas o silêncio.

Que pena que o senhor não conhece Frycek!
Sua mãe conseguiu dá-lo à luz um tantinho antes da guerra.
E ele queria ser um arenque, que tem seu próprio sal
ou uma mosca, que é  livre para zumbir.
Pois lhe era permitido ser apenas um pouco.
Atrás do armário, sonhava com cebola,
e como não iria chorar com sonhos assim?!

Eu ficava atrás do armário, não jantava. Quando vinha alguém ficava quietinho, nunca saía ao sol. Me cobria com um edredom cheio de piolhos. Pensei que eu iria ser sempre assim. Eles falavam que iam viajar para Częstochowa e que iam me deixar. Queria chorar, mas pensava: e daí, quando eles viajarem vou sair de trás do armário.

Que bom que o senhor não conhece Frycek, que atrás do armário fingia ser uma teia de aranha!
A filhinha sentada na janela verde.
Por anos chia o samovar de Vitebsk.
Soltam fumaça as sonolentas lâmpadas de querosene.
O arenque alado lá do céu abençoa as feiras.
Enfim, para que acreditar em Frycek?
Afinal, Frycek não é Deus.

II

E um dia chegou a mamãe e me levou para outro apartamento, onde precisava chamar a mamãe de “senhora” e não podia chamá-la de mamãe.
Às vezes me esquecia de chamar a mamãe de “senhora” e a mamãe ficava muito nervosa. Mas para mim era muito difícil me acostumar com isso, era tão duro que de vez em quando precisava sussurrar no ouvido da mamãe algumas vezes: “Mamãe, mamãe, mamãe”. E perguntava: “Mamãe, quando a guerra acabar eu vou poder chamar você em voz alta de – “mamãe”?

Eis os versículos do Novíssimo Testamento.
Nele seis milhões de laudas carbonizadas,
e mira-se nas sobreviventes, faz anos,
o castiçal vermelho do incêndio.
E há também o testemunho das coisas.
No espelho do barbeiro
o terror barbudo
despertou círculos cada vez mais amplos, mais amplos,
como na água verde e triste,
e explodiram aquele mundo.
Não sobrou nem o reflexo.
Mandaria para o senhor, senhor Chagall,
nem que fosse um pequeno caco do espelho,
mas eles já estão nas profundezas
do estrato de uma era morta,
e ao redor deles a abundância de ossos,
os quais fazem muita questão
que se silencie um pouco sobre eles,
os quais jazem em todos os lugares incógnitos,
e que se reze por eles
em voz alta
a palavra: “Mamele”

A criança tinha muito medo da morte. Se agarrava à mãe e perguntava: “Mamãe, a morte dói muito?” A mãe chorava e falava: “Não, é bem rapidinho”- e assim as fuzilaram.

E surgiram novos desertos:
as areias de Majdanek, Sobibór,
as dunas de Treblinka e Bełżec[1],
onde o vento deita para o descanso eterno
não sílica, mica e arenito –
triturados na mó dos mares antigos –
mas cálcio e carbono
da estirpe humana reduzida a pó.
Eu – ser humano, eu – filho desta terra,
eu – irmão não queimado daqueles,
ainda vejo como o galo do senhor, que ficou cego,
protege as sobras dos assuntos humanos,
e no último dia da destruição
se eleva acima das cinzas.

III

Nos terrenos dos antigos campos da morte, os bandos de ladrões grassam, procurando o ouro nas camadas de cinzas que restaram dos prisioneiros queimados.

Na escuridão, as cinzas
fluem pelas ampulhetas crivadoras.
E no ar é assim
como se respirasse o seu último suspiro.
Às vezes, a estrela ressuscitada de sob a terra
alumia a noite:
um dente de ouro extraído das cinzas.
E então dá para ver nesse brilho
as mãos dos antropoides escorrendo vermelho.
Hoje conheci estas mãos,
embora de dia estejam limpas como uma hóstia:
batiam palmas para os trens que passavam,
e nos quais nos deixaram para sempre
Rosa Gold e Frycek de detrás do armário,
deixando os seus mortos.
Creio que acharão abrigo
e que ainda os encontrarei
nos recantos seguros
das cores oraculares
nos seus quadros, senhor Chagall.

* Traduções de Piotr Kilanowski. Publicado inicialmente em Qorpus.


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