segunda-feira, 26 de junho de 2017

Dois poemas de Ana Carolina Vaz



O DIA ESQUECIDO

Um dia, pela manhã
Passearei no jardim que dá para o nevoeiro.

Hoje não!
Que tenho pressa
E gente esperando por mim no alto das escadas.

Hoje não!
Que tenho o dia preenchido
De olhos inquisidores, mão de veludo, palavras vagas.

Hoje não!
Que tenho o dia
Mil vezes suicida
Com eléctricos, deveras, gente perdida.

Um dia...
Pela manhã!


MENINO TONTO

Menino tonto...
que desenha as mãos dos homens como se fossem garras

E para quem os sinos
nasceram um dia com olhos
(Quem sabe lá se os sinos têm olhos?!...)

Menino tonto...
que desenha bonecos transparentes
para lá de si próprio.

Menino tonto..,
que tem uma lágrima longa guardada
para lá da loucura.

Menino tonto...
Dos carros tenebrosos com rodas erguidas em todos os sentidos
e do mar de ondas negras do lápis que ontem pediu à mãe...

Menino tonto...
dos barcos à vela
com uma estrela pendurada.
Menino tonto... Ó meu menino tonto!
Vamos por outra estrela na amaruda?


sexta-feira, 23 de junho de 2017

Quatro poemas de Claribel Alegría



DEIXA-ME ENTRAR

Deixa-me entrar em tua dor,
não romperei o silêncio.
Levarei rosas frescas que o perfumem
e meu amor como uma lamparina.
Para teu céu escuro
guardo fogo de estrelas,
pássaros fluorescentes
e reinos de nuvens brancas.
Deixa-me entrar;
esperarei até que me abras.
Estou sozinha na sombra
e o sopro do vento morde.


AQUI ESTOU

Aqui estou, outra vez,
presa em meu anel de silêncio
querendo adivinhar a voz do mundo
que me chega confusa.
Ouço de longe a dor,
não sei o canto do gozo,
um muro de névoa me rodeia
e é de fogo minha angústia.
Vem em meu socorro, vento,
rompe minha prisão leve e leva-me a uma ilha sem muros
onde possa ouvir todas as vozes!

CANTO AO FILHO QUE VEM

Por minha corrente sanguínea
fazes tua viagem ao mundo,
e te imagino belo,
coroado de júbilo e mistério.
Como serão teus olhos?
Porventura se abrirão entre minhas águas quietas?
Como será tua voz que já meu amor sustenta?
Adivinho-lhe carregada de sóis e distâncias,
recolhendo seu aroma por verdes litorais.
Por que fui eu e não outra a que engendrou teu alento?
Tenho medo que herdes minha tristeza,
minha solidão,
minha angústia.
Mergulhado em meu interior de trevas
teu coração palpita.
Chegam a ele os incendiados rios de meu corpo.
Por que através de mim fazes tua entrada ao pranto?
Se romperão tuas asas entre minhas penas duras
e em vez do canto um grito chegará em teus ouvidos.

CARTA AO TEMPO

Estimado senhor:
Escrevo esta carta em meu aniversário.
Recebi seu presente. Não gostei.
Sempre e sempre o mesmo.
Quando criança, impaciente o esperava;
vestia-me de festa
e saía à rua a anunciá-lo.
Não seja tenaz.
Todavia o vejo
jogando xadrez com o avô.
No início eram esparsas suas visitas;
logo se tornaram cotidianas,
e a voz do céu
foi perdendo seu brilho.
E você insistia
e não respeitava a humildade
de seu doce caráter
e seus sapatos.
Depois me cortejava.
Era eu adolescente
e você com esse rosto que não muda.
Amigo de meu pai
para ganhar a mim.
Pobrezinho do avô!
Em seu leito de morte
você estava presente,
esperando o fim.
Um ar insuspeito
flutuava entre a mobília.
Pareciam mais brancas as paredes.
E havia alguém mais;
você fazia sinais.
Fechou os olhos do avô
e se deteve um instante a me contemplar.
Proíbo-lhe que volte.
Cada vez que o vejo
corre-me pela espinha um frio.
Não me persiga mais,
suplico-lhe.
Há anos que amo outro,
e já não me interessam suas oferendas.
Por que me espera sempre nas vitrines,
na boca do sonho,
sob o céu indeciso do domingo?
Conheça sua saudação cerrada.
Eu o vi outro dia com as crianças.
Reconheci seu traje:
o mesmo tweed de sempre
quando eu era estudante
e você amigo de meu pai:
seu ridículo traje de entretempo.
Não volte,
Repito.
Não se fique mais em meu jardim.
Assustará as crianças
e as folhas caem:
Eu vi.
De que serve tudo isso?
Se vai rir um pouco
com esse riso eterno
e seguirá vindo ao meu encontro.
Os meninos,
meu rosto,
as folhas,
tudo extraviado em suas pupilas.
Ganhará sem remédio.
Ao começar minha carta já sabia.


Foi a única da América Central a ganhar o Prêmio Reina Sofía de Poesía Iberoamericana - feito alcançado em 2017. Vivia em Manágua, capital da Nicaráuga, seu país natal. Claribel é uma das vozes mais representativas da literatura centroamericana do século XX. Nasceu em maio de 1924 na cidade de Estelí; cresceu em Santa Ana, região ocidental de El Salvador, onde vivia a família materna. Sua poética, de um estilo oral se moveu por temas que vão da denúncia social e o compromisso político, ao amor, a solidão e o esquecimento. Associada geralmente à chamada Geração Engajada (a qual pertenceu o salvadorenho Roque Dalton), por sua obra de corte político, Alegría publicou mais de duas dezenas de livros ao longo de sua vida; obra que foi traduzido em vários idiomas. Também traduziu obras de escritores anglo-saxões e escreveu ensaios e romances. Além do Reina Sofía, ganhou o Prêmio Internacional Neustadt de Literatura. Morreu no dia 25 de janeiro de 2018.

* As traduções são de Pedro Fernandes

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Um poema de Rosario Castellanos



AUTORRETRATO

Sou uma senhora: tratamento
difícil de conseguir, em meu caso, e mais útil
para alternar com qualquer outro título
acrescentado a meu nome em qualquer academia.

Assim, pois, olho meu prêmio e repito:
sou uma senhora. Gorda ou magra
a depender da posição dos astros,
dos ciclos glandulares
e outros fenômenos que não compreendo.

Loira, se escolho uma peruca loira.
Ou morena, segunda alternativa.
(Na verdade, meu cabelo grisalha, grisalha.)

Sou mais ou menos feia. Isso depende muito
da mão que aplica a maquiagem.
Minha aparência mudou ao longo do tempo
– embora nem tanto como disse Weininger
que muda a aparência do gênio. Sou medíocre.
O que, por uma parte, me exime de inimigos
e, por outra, me dá a devoção
de algum admirador e a amizade
desses homens que falam por telefone
e enviam longas cartas de felicitação.
Que bebem lentamente uísque sobre as pedras
e falam de política e de literatura.

Amigas... hmmm... as vezes, raras vezes
e em muito pequenas doses.
Em geral, evito os espelhos.
Digo o de sempre: que me visto muito mal
e que faço o ridículo
quando pretendo flertar com alguém.

Sou mãe de Gabriel: você já sabe, esse menino
que um dia se tornará juiz incorruptível
e que talvez, além disso, exerça o papel de carrasco.
Enquanto tanto o amo.

Escrevo. Este poema. E outros. E outros.
Falo de um lugar.
Colaboro em revistas de minha especialidade
e um dia por semana publico num jornal.

Vico em frente ao Bosque. Mas quase
nunca volta os olhos para olhá-lo. E nunca
atravesso a rua que me separa dele
e passeio e respiro e acaricio
a copa rugosa das árvores.

Sei que é obrigatório escutar música
mas fujo dela com frequência. Sei
que é bom ver pintura
mas não vou nunca às exposições
nem à estreia teatral nem ao cineclube.

Prefiro ficar aqui, como agora, lendo
e, se apago a luz, pensando em rato
em musaranhos e outras necessidades.

Sofro melhor por costume, por herança, por não
diferenciar-me mais de meus congêneres
que por causas concretas.

Seria feliz se eu soubesse como.
Isto é, se me houvessem ensinado os gestos,
as falas, as decorações.

Ao contrário me ensinaram a chorar. Mas o pranto
é em mim um mecanismo decomposto
e não choro na câmara mortuária
nem na ocasião sublime nem frente à catástrofe.

Choro quando queima o arroz ou quando perco
o último recibo do condomínio.


* Tradução de Pedro Fernandes

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Três poemas de Wallace Stevens



TATUAGEM

A luz lembra uma aranha.
Caminha sobre a água.
Caminha pelas margens da neve.
Penetra sob as tuas pálpebras
E espalha ali suas teias –
Duas teias.

As teias de teus olhos
Estão atadas
À carne e aos ossos teus
Como a um caibro ou capim.

Há filamentos de teus olhos
Na superfície da água
E nas margens da neve.


CANÇÃO

Há coisas esplêndidas acontecendo
No mundo,
Coelhinho.
Há uma donzela,
Mais doce que o som do salgueiro,
Mais suave que água rasa
Correndo sobre seixos.
No domingo,
Ela veste um casaco longo,
Com doze botões.
Conta isso à tua mãe.


DEPRESSÃO ANTES DA PRIMAVERA

O galo canta,
Mas rainha alguma se levanta.

Minha loura tem cabelos
Deslumbrantes,
Como o cuspo das vacas
Costurando o vento.

Uô! Uô!

Mas cocoricó
Não traz curru nenhum,
Nenhum curru-curru.

Mas rainha alguma vem
Com verde chinelinha.


* Tradução de Paulo Henriques Britto

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Dois poemas inéditos de Juan Goytisolo



DESMEMÓRIA

1
Dissolução da memória
como neve
num vaso d’água
A imagem que se esfuma,
o calor que existiu
no leito vazio.
Invalidez.
Não há
consolo em olhar
a foto desfeita,
tudo se esquece,
tudo fica para trás.

2
Desmemória que chega
pelas margens.
Datas, lugares, nomes,
apagados sem piedade.
Pedra jogada,
relvado do esquecimento.
Bagagem de luz
afrontarás o abismo,
sombra de ti mesmo
no ponto final.

3
Contempla no espelho
um corpo que não é seu.
Ser antropomorfo,
deambulou erguido
no tempo já remoto.
A vida o venceu.
Envolto em si mesmo
assiste sem memória
a sua consumação.

4
Feliz o que se morre
sem saber que se morre.
Privilégio dos ancestrais
sem rituais funerários
nem ficções de dor.
Se está e já não está.
Ascendentes e prole
não sofrem da ausência.
Placidez envolta,
ar limpo de voo.
Ser tartaruga ou cegonha.

5
Contempla-me um gato
com olhos de aristocrata inglês.
Que espera de mim?
Por que tanta fixação?
Há uma censura muda
a uma maldade que escondo?
É um convite
a expiar uma pena?
O gato não é um gato.
É minha alma e minha consciência


CINZAS

1
Cinzas
já sem brasa alguma.
Tudo consumado.
Nada é a chama
que acendeu,
o ardor que dá vida
à voz e à imagem.
Tudo se extingue
e dissipa
a embriaguez do instante

2
Ao admirar teu corpo,
de membros rijos e vigorosos,
lamento minha degenerescência
na ficção do tempo.
Impossível recolher-se
ao peito hirsuto
e ao vigor de teus braços.
O abismo de um século nos separa.
Mas tua apagada imagem,
ao fio dos anos,
desafia
o efêmero mesquinho
e me concede,
dono do espelhismo,
tua plenitude recobrada.

* Traduções de Pedro Fernandes