segunda-feira, 31 de julho de 2017

Três poemas de Michael Hartnett



A ÚLTIMA VISÃO DE EOGHAN RUA Ó SÚILLEABHÁIN 

A vaca da manhã jorrou
névoa-leite em cada vale
e o ruído de pés veio
dos lados alvos das colinas.
Vi como fantasmas
meus companheiros
e em vez das costumeiras pás
tinham rosas em suas espáduas.

*

Eu digo adeus ao verso inglês,
que achei, por certo, em rede inglesa:
meu Lorca estendendo seus braços
a fim de amar a beleza das balas,
Pasternak, que sobreviveu a Stálin
e morreu devido a menores bestas;
a todos os poetas que amei,
de Wyatt a Robert Browning;
ao Padre Hopkins na tumba sempre cheia
de gente, e ao nosso bicho-papão Yeats,
que nos impôs o exílio

em ilhas de maus versos.

Entre os meus amigos vivos
não há poeta que eu não ame,
ainda que alguns escrevam
com seus corações tão acres;
eles são uma arte, nossas muitas artes.

Poetas que prosseguem
não fazem paz nem pacto.
O ato da poesia
É rebelde de fato

*

Não é nova esta estrada,
nem coisas novas eu forjo.
Não pode ser retirada
das mentes aspirador-de-pó
a ideia de servir a reis mortos.

Não sou novo em nada.
Nem uma boca só eu sou
tentando ver se cava
um nicho para a cultura
no clero-conturbado sul.

Mas não verei, calado,
a queda dos grandes:
os que andam em trapos
pelas cidades, errantes
tendo no inglês um preciso pecado,
língua pra vender porcos no mercado.

Fiz minha escolha e parto
com mínimo choro.
Vim com minha voz parca
cortejar a língua do meu povo

* Traduções de Marcelo Tápia

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Um poema de Brendan Kennelly



PROVA 

Queria que tudo fosse livre de mim, 
Nunca matar os dias com suposições, 
Nunca sentir que eles sofrem imposições 
De serem isto e não aquilo. 
É fácil, sim, Mutilar o momento, aleijá-lo 
Com expectativas, forçá-lo a definir-se 
A si mesmo. Além de tudo que sou, o sol 
Espalha seus raios como se por acaso. 

A raposa come o próprio pé na armadilha 
Para livrar-se. Enquanto manca pela relva, 
É a terra que parece sangrar. 
Quando chega, então, a luz do dia, 
Quem sabe da dor que a noite leva? 
De prova é que não vou precisar.

* Tradução de Marcelo Tápia

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Um poema de Mario Vargas Llosa



POEMA PARA A EXORCISTA

A minha vida aparece sem condão e
monótona
aos que me vêem
no trabalho árduo da oficina
em manhãs apuradas.
A verdade é muito distinta.
Cada noite eu saio e discuto
contra um espírito malévolo
que, se valendo de
máscaras - cão, grilo,
nuvem, chuva, vagabundo,
ladrão - trata de
se infiltrar na cidade
para estragar a vida humana
semeando
a discórdia.
Apesar dos seus disfarces
sempre a descubro
e a espanto.
Nunca conseguiu enganar-me
nem vencer-me.
Graças a mim, nesta cidade
ainda é possível
a felicidade.
Mas os combates nocturnos
deixam-me exausta e ferida.
E para compensar a minha
guerra contra o inimigo,
peço uns restos
de afecto e de amizade.

Nova York, novembro de 2001

Mario Vargas Llosa nasceu a 28 de março de 1936, em Arequipa, Peru. Um dos mais importantes romancistas do entre-séculos XX-XXI, reconhecido e premiado por certames de variado peso, incluindo o Prêmio Nobel de Literatura em 2010. Autor de vasta obra e pela poesia cuidou de alguns exercícios, raros aos olhos públicos. 

* Tradução de Pedro Calouste.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Três poemas de Adam Zagajewski



HAVIA MESES QUE NÃO ESCREVIA

Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.


NÃO DEIXES QUE O LÚCIDO MOMENTO SE DISSOLVA 

Não deixes que o lúcido momento se dissolva 
Que o radiante pensamento perdure na quietude 
embora a página esteja quase cheia e a chama trémula 
Não atingimos ainda o nível de nós próprios 
O conhecimento cresce lentamente como um dente do siso 
A estatura de um homem tem ainda uma incisura 
lá no alto numa porta branca 
De longe chega a voz alegre de um trompete 
e uma canção enrolada como um gato 
O que passa não cai no vazio 
Um fogueiro alimenta com carvão o fogo 
Não deixes que o lúcido momento se dissolva 
numa substância dura e seca 
Tens a obrigação de gravar a verdade


NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS 

Só na beleza criada pelos outros 
existe consolação, na música 
e nos poemas dos outros 
Só os outros nos podem salvar, 
mesmo que a solidão tenha o sabor 
do ópio. Não são o inferno, os outros, 
se os espreitarmos de manhã, quando 
têm a testa limpa, lavada pelos sonhos. 
Por isso cismo muito sobre a palavra 
que hei-de usar, "ele" ou "tu". Cada "ele" 
é uma traição a qualquer "tu", mas, 
em troca, um poema de alguém fielmente 
oferece uma fresca, moderada conversa.

Adam Zagajewski nasceu a 21 de junho de 1945 em Lwów, na Polônia. Poeta, ensaísta e tradutor. Foi professor no seu país e nos Estados Unidos, onde vive. Traduzido em várias línguas, venceu, entre outros prêmios, o Neustadt em 2004 e o Princesa das Asturias em 2017. Morreu na Cracóvia, a 21 de março de 2021.

* Traduções de Marco Bruno.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Três poemas de Lila Ripoll



VIM AO MUNDO EM AGOSTO

Sou triste de nascença e sem remédio.
Vim ao mundo no triste mês de agosto
o mês fatal das chuvas e do tédio,
e nasci quando o sol estava posto.

Vim ao mundo chorando... (o meu presságio!)
Um vento mau marcava na vidraça
o plangente compasso de um adágio,
anunciando agoirento uma desgraça.

Sou triste. É irremediável este mal.
E eu não quero curar minha tristeza.
Só ela para mim tem sido leal,
Na minha via-sacra de incerteza.

Sou triste de nascença. É mal sem cura.
A vida não desfez meu nascimento.
Sou a menina triste e sem ventura,
que em agosto nasceu, com chuva e vento.

RETRATO

Chego junto do espelho. Olho meu rosto.
Retrato de uma moça sem beleza.
Dois grandes olhos tristes como agosto,
olhando para tudo com tristeza!

Pequeno rosto oval. Lábios fechados
para não revelar o meu segredo...
Os cabelos mostrando, sem cuidados,
Uns fios brancos que chegaram cedo.

A longa testa aberta, pensativa.
No meio um traço, leve, vertical,
indicando uma ideia muito viva
e os sérios pensamentos: — o meu mal!...

O corpo bem magrinho e pequenino.
— Sete palmos de altura, com certeza. —
Tamanho de qualquer guri menino
que a idade, a gente fica na incerteza!

E nada mais. A alma? Ninguém vê.
O coração? Coitado! está bem doente.
Não ama. Não odeia. Já não crê...
E a tudo vive alheio, indiferente!...

Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.
O espelho é meu amigo. Nunca mente.
No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.
E sabe desde quando estou descrente!...


CANÇÃO DE AGORA

Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.