terça-feira, 29 de agosto de 2017

Os nomes da edição n.14 da Revista 7faces



O estreito diálogo entre poesia e cinema compõe uma das faces da nova edição da revista cujas primeiras chamadas foram divulgadas em nossa página no Facebook desde há um mês. Essa face é representada pelo nome de Mário Peixoto, cineasta, roteirista e escritor brasileiro que nasceu em Bruxelas (?) em 1908 e morreu em 1992 no Rio de Janeiro. Peixoto é autor de livros como o romance O inútil de cada um, o roteiro Outono: jardim mar, os ensaios Escritos sobre cinema e o livro de poemas Poemas de permeio com o mar.

Este número da Revista 7faces é organizado em parte pelo pesquisador da obra de Mário Peixoto, Filippi Fernandes. A edição incluirá, além de ensaios sobre as várias vertentes criativas de Mário Peixoto escritos por especialistas, poemas de José Luís Peixoto, Jonas Leite, Chary Gumeta (poeta mexicana traduzida por Pedro Fernandes), Rodrigo Novaes de Almeida, Lucas Rolim, Gabriel Abilio de Lima Oliveira, Carlos Augusto Pereira, Geovane Otavio Ursulino, Rosa Piccolo, Izabela Sanchez, Orlando Jorge Figueiredo, Diego Ortega dos Santos, Lucas Facó e Felipe Simas.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Três poemas de Guillaume Apollinaire




A PONTE MIRABEAU

Escorre sob a ponte o rio Sena
E em nossos amores
A lembrança me acena
Vinha sempre o prazer depois da pena
Que venha a noite e soe a hora
Os dias se vão não vou embora
Mãos nas mãos esperemos face a face
Até que sob a ponte
Dos nossos braços passe
O eterno desse olhar em nosso enlace
Que venha a noite e soe a hora
Os dias se vão não vou embora
O amor se vai como água turbulenta
Assim o amor se vai
E como a vida é lenta
E como esta Esperança é violenta
Que venha a noite e soe a hora
Os dias se vão não vou embora
Os dias passam passam as semanas
Não voltam o passado
Nem as paixões humanas
E o Sena flui em águas soberanas
Que venha a noite e soe a hora
Os dias se vão não vou embora
Os dias passam passam mas que pena
Passado amor
Nenhuma volta acena
Na ponte Mirabeau se vai o Sena
A noite venha sem demora
Eu fico e o tempo vai embora

* Tradução de Décio Pignatari


MARIA

Está dançando menina
E velha ainda dançará
É o ritmo que domina
Todos os sinos soarão
Quando Maria voltará

As máscaras e outros véus
E a música tão afastada
Que parece vir dos céus
Posso amar-te mais um nada
Minha dor é delicada

Os carneiros pela neve
São flocos de prata e lã
Soldados passam quem leve
Meu volúvel coração
Volúvel e talvez não

Sei onde irão teus cabelos
Crespos como o mar sem dono
Sei onde irão teus cabelos
E as tuas mãos folhas de outono
Juncam também nossos zelos

Passeio à margem do Sena
Com um velho livro na mão
O rio igual à minha pena
Passa e nunca se apequena
Não vejo o fim da quinzena


DESEJO
Meu desejo é a região diante de mim
Atrás das linhas boches
Meu desejo está também atrás de mim
Depois da zona das tropas

Meu desejo é a colina ardente
Meu desejo está no alvo que miro
Do meu desejo além da zona das tropas
Hoje não falo mas penso

Colina ardente eu te imagino em vão
Arames metralhadoras dos boches demasiado seguros deles mesmos
Demasiado metidos na terra já enterrados

Ca ta clac disparos que morrem se afastando

Em vigília tarde da noite
É um da província que tosse
A telha ondulada sobre a chuva
E sem que a chuva se adoce

Escuta a terra veemente
Vê os clarões antes de ouvir os tiros
O tac clac monótono e breve
Um obus a assobiar demente

Eu te vejo Mão de Massiges
Tão descarnada no mapa
A trincheira Goethe em que atirei
Atirei mesmo sobre a Nietzsche
Francamente eu não respeito
Glória nenhuma

Noite violenta e violenta sombria e por instantes dourada
Noite dos homens apenas
Noite de 24 de setembro de 1915
Amanhã o assalto
Noite violenta ó noite cujo grito espantoso a cada minuto é mais intenso
Noite dos homens apenas
Noite que grita como uma mulher parindo.

*Traduções de Paulo Hecker Filho


Guillaume Apollinaire nasceu em 26 de agosto de 1880 e morreu em 9 de novembro de 1918, em Paris, próximo ao fim da primeira Grande Guerra, da qual participou e onde foi ferido gravemente em março de 1916. Participou ativamente e influenciou os movimentos de vanguarda que sacudiram a capital francesa no princípio do século XX e acabaram por transformar definitivamente todas as artes. Sua obra é vasta e fragmentada, tendo sido publicada durante quase duas décadas em jornais, revistas, panfletos e livros. Percorreu todos os gêneros – poesia, prosa, prosa poética, teatro, ensaio, crítica – e entre tantas obras podemos destacar L'Hérésiarque e Cie (1910), Álcoois (1913), e Le poète Assassiné (1916).


segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Três poemas de Jules Laforgue



MEDIOCRIDADE

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saudam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o seu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.


LOCUÇÕES DO PIERROT XII

Mais outro livro ; ó nostalgias
Longe de todo este gentio,
Do tal dinheiro e do elogio,
Bem longe das fraseologias!

De novo um dos meus pierrots morto;
Daquele crônico orfelismo,
Coração pleno de dandismo
Lunar em um estranho corpo.

Nossos deuses se vão; sem cura,
Os dias, de mal a pior,
Já fiz o meu tempo. É melhor
Sim, entregar-se à Sinecura!


LAMENTO DA BOA DEFUNTA

Pela avenida ela fugia,
Iluminada eu a seguia,
Adivinhei! O olho dizia,
Hélas! Eu a reconhecia!

Iluminada eu a seguia,
Boca ingênua, nada via,
Oh! sim eu a reconhecia,
Ou sonhaborto ela seria?

Boca murcha, olho-fantasia;
Branco cravo, azul esvaía;
O sonhaborto amanhecia!
Ela em morta se convertia.

Jaz, cravo, de azul esvaía,
A vida humana prosseguia
Sem ti, defunta em demasia.
– Oh! já em casa, boca vazia!

Claro, eu não a conhecia.

* Tradução Régis Bonvicino

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Três poemas de Juan Manuel Roca



ARENGA DE UM QUE NÃO FOI À GUERRA

Nunca vi nos corrimões de uma ponte
A doce mulher com olho de assíria
Enfiando uma agulha
Como se fosse remendar o rio.
Nem mulheres sozinhas à espera nas aldeias
Que a guerra passe como se fosse outra estação.
Nunca fui à guerra, nem me faz falta,
Porque desde menino
Sempre perguntei como se ia à guerra
E uma enfermeira bela como um albatroz,
Uma enfermeira que corria por longos corredores
Gritou com grasnido de ave sem olhar para mim:
Já estás nela, rapaz, já estás nela.
Nunca fui ao país dos hangares,
Nunca fui porta-bandeira, hussardo, mujique de alguma estepe.
Nunca viajei de balão por eriçados países
Povoados de tropa e cerveja
Não escrevi como Ungaretti cartas de amor nas trincheiras.
Nunca vi o sol da morte a arder no Japão
Nem vi homens de grande pescoço
A repartir a terra num jogo de cartas.
Nunca fui à guerra, nem me faz falta,
Para ver a soldadesca a lavar os brancos estandartes
E de seguida a ouvi-los falar da paz
Ao pé da legião das estátuas.


CANÇÃO DO QUE FABRICA ESPELHOS

Fabrico espelhos:
Ao horror acrescento mais horror,
Mais beleza à beleza.
Levo pela rua a lua de azougue:
O céu reflecte-se nos espelhos
E os telhados bailam
Como um quadro de Chagall.
Quando o espelho entrar noutra casa
Apagará os rostos conhecidos,
Porque os espelhos não contam o seu passado,
Não denunciam antigos moradores.
Alguns constroem prisões,
Grades para jaulas.
Eu fabrico espelhos:
Ao horror acrescento mais horror,
Mais beleza à beleza.


POEMA INVADIDO POR ROMANOS

Os romanos eram maliciosos.
Encheram a Europa de ruínas
Conjurados com o tempo.
Interessava-lhes o futuro,
Os traços mais do que as pegadas.
Os romanos, Cassandra, eram manhosos.
Não imaginaram o Aqueduto de Segóvia
Como uma conduta de água e de luz.
Pensaram-no como vestígio,
Como um absorto passado.
Semearam de edifícios musgosos a Europa,
De estátuas acéfalas
Engolidas pela glória de Roma.
Não fizeram o Coliseu
Para que os tigres devorassem
Por capricho seu os cristão,
tão pouco apetecíveis,
Nem para ver trespassados
Como aperitivos do inferno
os exércitos de Espártaco.
Pensaram a sua ruína, uma ruína proporcional
à sombra mordida pelo sol que agoniza.
O meu amigo Dino Campana
Poderia ter saltado à jugular
De um dos seus deuses de mármore.
Os romanos dão muito em que pensar.
Por exemplo,
Num cavalo de bronze
da Piazza Bianca.
No momento de o restaurar,
Ao assomarem à boca aberta,
Encontraram no ventre
esqueletos de pombas.
Como o teu amor,
Que se torna ruína
Quando mais o construo.
O tempo é romano.

* Tradução de Nuno Júdice


segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Quatro poemas de Joan Margarit



CASA DA MISERICÓRDIA

O pai fuzilado.
Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe, a miséria e a fome,
a instância que alguém lhe escreve à máquina:
Saludo al vencedor, Segundo Año Triunfal,
Solicito a Vuecencia deixar os filhos
nesta Casa da Misericórdia.
O frio do seu amanhã está numa instância.
Os orfanatos e hospícios eram duros,
mas ainda mais dura era a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, tem de ser cruel.
Não há mais nada. A poesia é agora
a última casa da misericórdia.


SATURNO

Rasgaste os meus livros de poemas
e deitaste-os para a rua pela janela.
As folhas, como estranhas borboletas,
iam pairando por cima das pessoas.
Não sei se agora nos entenderíamos,
dois homens velhos, cansados e desiludidos.
De certeza que não. Deixemo-lo assim.
Tu querias devorar-me. Eu, matar-te.
Eu, o filho que tiveste durante a guerra.


VOZES DE CRIANÇAS

O amanhã nos meus olhos é de um cinzento triste,
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.


O SAPATEIRO

Costumávamos jogar ali à bola.
A praça da igreja erguia-se
uns dois metros acima de umas pequenas hortas
que estavam ao lado de um sapateiro.
Quando a bola caía, algum dos nossos
tinha de ir rápido dependurando-se.
Se o sapateiro chegava lá antes,
cortava-a com o seu cutelo.
Não sei que pescoço cortava na bola
de borracha daquelas crianças. Dava-me medo.
Um medo que já não era o mesmo
que o dos contos ou do quarto escuro.
Era um medo mais duro. Mais real.
Como quando tu estavas com outro,
ou quando morreu a nossa filha.

Joan Margarit i Consarnau nasceu a 11 de maio de 1938 em Sanaüja (Segarra, Catalunha). Viveu a infância e adolescência entre Barcelona, Rubí, Figueres, Girona e Tenerife. Formou-se em arquitetura e fez carreira acadêmica na Escola Técnica Superior de Arquitetura em Barcelona. Autor de vasta obra, sua poesia foi organizada em 2020 em Tots els poemes (1975-2017). Ao longo de sua carreira acumulou vários prêmios, entre eles o Prêmio Ibero-americano de Poesia (2017), o Prêmio Reina Sofía de Poesia (2019) e o Prêmio Cervantes (2019). Joan Margarit morreu a 16 de fevereiro de 2021.

* Traduções Rita Custódio e Àlex Tarradellas