segunda-feira, 15 de maio de 2017

Três poemas de Gilka Machado



NOITE DE SELVAGEM

Entro na selva. A noite é espessa. De centenas
de pirilampos toda a mata se ilumina;
astros movem no espaço as rútilas antenas,
como insetos de luz, numa etérea campina.

Ergo ao céu, desço à terra a assombrada retina,
e ante as luzes astrais e ante as luzes terrenas,
a terra e o céu, o céu e a terra, julgo, apenas,
um céu que se distende, alonga e indetermina.

Em cima há tanta luz que o olhar erguido pasma!
Cada estrela parece um luminoso miasma
a medrar, a fulgir da treva na espessura.

E a noite de tão negra, e tão ampla, e tão densa,
é um pântano infinito, uma lagoa imensa,
a decompor-se em luz, a efervescer na altura.


SÍMBOLOS

Eu e tu, ante a noite e o amplo desdobramento
do mar, fero, a estourar de encontro à rocha nua...
Um símbolo descubro aqui, neste momento
esta rocha, este mar.. a minha vida e a tua.

O mar vem, o mar vai, nele há o gesto violento
de quem maltrata e, após, se arrepende e recua.
Como compreendo bem da rocha o sentimento!
são muito iguais, por certo a minha mágoa e a sua.

Contemplo neste quadro a nossa triste vida;
tu és dúbio mar que, na sua inconsciência,
tem carinhos de amor e fúrias de demência!

Eu sou a dor estanque, a dor empedernida,
sou a rocha a emergir de um côncavo de areia,
imóvel, muda, isenta e alheia ao mar, alheia.

INFÂNCIA

Aquela criança
que eu não pude ser,
criança triste
que conservo ainda,
nunca teve o prazer
de acender um balão,
em tua noite linda,
S. João.

Aquela criança
que devera ser
e a miséria tolhia,
tudo esperava de teu místico poder;
e ardia,
e ardia,
na tua noite fria,
cheia de devoção,
ao cativo balão
que se enchia
e fulgia,
dentro da minha imaginação.

A velha criança
que se fez meu ser,
cuja louca esperança
não se finda,
guarda ainda
a ilusão
de surpreender
a gurizada
alvoroçada,
com o mais belo balão...
Faze o milagre, abre-me o peito S. João,
realiza a minha antiga aspiração:
quero morrer em tua noite linda,
quero soltar em tua festa o coração!...