sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Edição n.17 da Revista 7faces está online





"Às vésperas do centenário do seu primeiro livro de poemas, o Livro de Mágoas, de 1919, qual retrato pode-se apreender hoje de Florbela?" A pergunta está no editorial da edição 17 da 7faces que rende homenagem ao trabalho literário de Florbela Espanca. Jonas Leite, o autor do texto e um dos organizadores deste número do periódico, não oferece já a entrada uma resposta para esta pergunta, afinal a possível elaboração de um retrato da poeta portuguesa só é dado pelas leituras que se seguem: por Elina Luiza dos Santos, Isa Margarida Vitória Severino, Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento, Maria Lúcia Dal Farra, Clêuma de Carvalho Magalhães, Fabio Mario da Silva, Andreia de Lima Andrade, Chris Gerry e Iracema Goor Xavier. Mas, a pergunta do editorialista, é bom que se diga, é infinita.

Além dos textos de figuras singulares nos estudos da obra de Florbela Espanca, o n. 17 da revista reúne poemas de Franco Bordino, Daniel Jonas, Lucas Grosso, Augusto de Sousa, Juan Manuel Palomino Domínguez, Carolina Pazos, Tibério Júlio de Albuquerque Bastos, Rebeca Rose dos Santos Leandro, Nathalia Catarina, Alaor Rocha, Paulo Emílio Azevedo e Moira Marques Portugal. Sobre os dois primeiros nomes é necessário sublinha duas coisas:

1. Franco Bordino foi o vencedor do importante prêmio literário oferecido pela instituição espanhola Casa de las Américas; o poeta recebeu o galardão pelo seu livro de estreia, feito razoavelmente inédito na história das premiações. Seu livro, Los primeros indicios, figura, assim, entre os melhores títulos de poesia de 2018, publicados em língua espanhola. Foi lido pelo júri como uma obra muito próxima a toda uma tradição poética que remete a Jorge Luis Borges. Os quatro poemas deste poemário enviados pelo poeta foram traduzidos por Pedro Fernandes de Oliveira Neto, editor da 7faces.

2. Daniel Jonas é já um poeta que em Portugal dispensa apresentações; com uma variedade de títulos publicada e uma lista considerável de prêmios que tem recebido por sua obra, é a primeira vez que muitos desde lado do Atlântico leem seu nome e alguns dos seus poemas. Em breve terão mais que isso: é que os poemas apresentados neste número foram selecionados a partir da antologia Os fantasmas inquilinos organizada por Mariano Marovatto e publicada pela Editora Todavia. Registre-se o feito em maneira de agradecimento ao organizador desta importante edição e ao seu editor Leandro Sarmatz pela parceria brilhante.

O site da revista onde se pode encontrar esta e outras edições é este.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Três poemas de Vasko Popa




Repadeira

Filha mais doce
Do verde sol subterrâneo
Fugiria
Da barba branca da parede
Se ergueria em plena praça
Vórtice envolto em sua beleza
Com sua dança-de-serpente
Fascinaria tempestades
Mas o ar de amplas espáduas
Não lhe estende as mãos


Aula de poesia

Sentamos no banco alvo 
Sob o busto de Lenau

Nos beijamos
E de passagem falamos
Sobre versos

Falamos sobre versos
E de passagem nos beijamos

O poeta vê algo através de nós
No banco alvo
No pedregulho do caminho

E silencia
Com seus belos lábios de bronze

No Parque da cidade de Vrchatz
Aprendo lentamente
O cerne da poesia


Crítica da poesia

Depois da leitura de poemas 
No serão literário da fábrica
Começa o diálogo

Um ouvinte ruivo
De face marcada por manchas solares
Ergue dois dedos

Camaradas poetas

Se eu lhes versificasse
Toda a minha vida
O papel ficaria rubro

E pegaria fogo

Vasko Popa nasceu em 29 de junho de 1922, em Grébenatz, na Sérvia. Parte dos títulos que publicou são Casca (1953), O campo do desassossego (1956), Paracéu (1968), A terra ereta (1972), Sal lupinoCarne viva e A casa do meio do caminho (três obras do mesmo ano, 1975) e Corte (1981). Morreu em 5 de janeiro de 1991.

* As traduções são de Aleksandar Jovanovic

sábado, 8 de dezembro de 2018

Os nomes da edição n. 17 da Revista 7faces



No dia 8 de dezembro de 1894, nasceu em Vila Viçosa, a poeta Florbela Espanca. No mesmo dia, 36 anos depois, em Matosinhos, sabe-se da sua morte. A vida tão breve foi marcada pela intensidade com que experimentou os arroubos por ela oferecidos: os amores e as dores, a criatividade, a dedicação ao literário, tudo foi vivido no máximo grau de expressão. Continuamente, a obra da poeta portuguesa tem sido matéria criativa para todas as gerações futuras desde quando se opera seu reconhecimento, tardio, mas expressivo. 

Em junho de 2019, passam-se os 100 anos da publicação do primeiro livro de Florbela Espanca. Livro de mágoas é singular na bibliografia breve da poeta porque assinala o talento criativo e poético da então jovem que frequenta o curso de Direito em Lisboa. Foram duzentos exemplares, custeados pelo pai, e editados por um amigo, que, apesar de logo vendidos, não significou merecerem a atenção justa da crítica que se apressou em classificar como emulação gratuita de António Nobre. 

Juntando a efeméride, uma maneira de não deixar a memória passar em branco o que não deve ser passado em branco, e inserindo-se entre as atividades criativas que ampliam o universo de Florbela é que a revista 7faces se antecipa na publicação deste número em homenagem à sua obra; não apenas ao livro de 1919, mas aos demais títulos que projetou ou publicou em vida e àqueles que foram conhecidos mais tarde graças a atenção da crítica, que a ver pelo passar dos anos, já se redimiu integralmente do silêncio surdo ou do julgamento taxativo em torno da poeta portuguesa.

O n.17 da revista 7faces chega online por esses dias. É organizada pelo estudioso da obra de Florbela, o professor Jonas Leite, quem reuniu um grupo importantíssimo da crítica brasileira e estrangeira que se desdobra a investigar lugares e elementos diversos da diversa obra da poeta. 

Além disso, foram selecionados para compor esta edição os trabalhos dos poetas Franco Bordino,  Daniel Jonas, Lucas Grosso, Augusto de Sousa, Juan Manuel Palomino Domínguez, Carolina Pazos, Tibério Júlio de Albuquerque Bastos, Rebeca Rose dos Santos Leandro, Nathalia Catarina, Alaor Rocha, Paulo Emílio Azevedo e Moira Marques Portugal.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Seis poemas de Yosano Akiko


1.
cabelos negros
são mil longos cabelos
descabelados
mente    descabelada
descabelada    mente

2.
aqui agora
paro     para recordar
da minha paixão
sem medo da escuridão
eu vivi   como um cego

3.
ouço o poema
como negar o carmim
da flor do campo?
delícias      a         menina
pecar        na     primavera

4.
lá    mergulhada
no fundo da nascente
a flor   de lírio
corpo de vinte verões
vejo assim tão bonito

5.
para castigar
os homens por todos seus
pecados          herdei
a pela     transparente
longos pelos corvinos

6.
nos dois países
da primavera e do amor
pra mim    aurora
há luz    em meus cabelos?
óleo    da flor de ameixa



Yosano Akiko nasceu em 7 de dezembro de 1878, em Osaka. Distingue-se desde o início de sua produção literária como uma das figuras mais inovadoras da literatura japonesa. Sua obra também é habitada por uma forte consciência feminista. A poeta morreu em 29 de maio de 1942. 


* Traduções de Donatella Natili e Álvaro Faleiros apresentadas em Descabelados.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Dois poemas de Orlando Mendes



Não, mas

Não fome nem sede nem cio
nem desejo de aventura
não o grito que percutiu
contra o medo que vos mura

não regras nuvens que adensam
e deslizam para o mar
não chuva implorada bênção
sobre a terra de semear

não a mão febril que deslavra
sofismado túnel da sua
liberdade. Mas a palavra

que se catapulta da rua
e nos sonos profundos lavra
como fogo que não recua.


Manhã

Quando a verde savana
é uma bandeira húmida batida pelo sol
as corolas se abrem lentamente
como tem de ser

esvoaçam cintilantes abelhas
e sugam o néctar essencial
e levam o pólen a outras flores
como tem de ser.

Toca cherila na machamba
e mufana não responde à chamada
três vezes repetida
como tem de ser

parte a descobrir flores abertas
e de corpo envolto na bandeira verde
o rosto agudo irradia luz
e os olhos incendeiam a manhã
porque o sol não queima epidermes da sua cor
como também tem de ser.

Orlando Mendes nasceu em 1916 na Ilha de Moçambique e morreu em Maputo em 1989. Formado em Biologia pela universidade de Coimbra, onde trabalhou como assistente de botânica, foi fitopatologista e atuou no Ministério da Agricultura de Moçambique como pesquisador de medicina tradicional. Escreveu peças para teatro, romance e poesia, o gênero no qual se situa sua obra mais significativa.O livro de estreia foi Trajectórias em 1940, ao que se seguiu Clima (1959), Depois do sétimo dia (1963), Portanto eu vos escrevo (1964), Véspera confiada (1968), Adeus de Gutucumbui (1974), A fome das larvas e País Emerso I (1975) - no ano seguinte publicou a continuidade deste título -, Produção com que aprendo (1978), Lume florindo na forja (1980) e As faces visitadas (1985).



segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Nove poemas de Armindo Trevisan



Primeira opção

Cada homem é levado por si, ou por outrem,
à amargura jubilosa de uma consciência de faca.
Por esta consciência os nós do seu sangue
lhe amadurecem até à hora em que as coisas
lhe caem sobre os olhos, com a velocidade
dos poléns que o sol enfureceu por descuido.


Segunda opção

Cada homem é levado à lucidez da carne,
porque a carne tem o bote harmonioso
das molas, que se enchem de visco e energia,
e impelem o vento na direção inacreditável
das velas atentas às madeiras odoríferas.


Terceira opção

Cada homem é levado a uma noite irreversível,
feita de todos os destroços de suas palavras,
e de todas as alturas de suas adesões.
Nessa noite - ó encanto! ó jardins suspensos! -
é-lhe concedido, pela primeira vez, o assombro
de dar-se um nome, como aos inventos eletrônicos.


Quarta opção

O homem, que é levado, dá-se um nome sem nome,
que só ele saberá, por mais que explique aos amigos
a perfeita lógica do pé que se liquefez,
ou a segurança bravia do tórax onde as buganvílias
cresceram como carícias ruborizadas pelo frio.
Ah! mas é terrível carregar-se consigo a flama,
que só em nossa pele logrará devorar o bosque.


Quinta opção

Mas a paz dos galos que escancaram as manhãs
acompanha a comitiva do que ficou um só.
Homens: escolhei vossos caminhos a cada curva,
dai-lhes de beber o leite de vossos cérebros,
propiciai-lhes o mel de vossas angústias inaugurais.
Há doçura no medo de errar onde não se errou,
e engrandece um erro sabê-lo único.


Sexta opção

Cada homem se leva, por si, ou por outrem,
ao território insensato no qual a morte admite
despir-se de sua indumentária da tábua e do cravo.
Ali é que ela exibe seu sexo ao homem
e o obriga a adorar a Deus na graça do vácuo,
onde o próprio Não sabe a misericórdia.


Sétima opção

Esta misericórdia procede da lâmina polida
que penetra até onde lhe é possível conduzir
o bico longilíneo do murmúrio que o homem
hospeda às avessas, no labirinto do seu rosto.
Contudo: ei-lo ali, este gigante que escolheu.
no meio de outros homens, uma coisa tão sua
que até se arrepende de ter vivido excessivamente.


Oitava opção

Decerto nosso corpo calcula o seu poderio
a partir dos dentes que afia para o ar.
Mas este corpo imediato, que é carne centrífuga,
não se cativa às leis que o fixam aos morangos,
ou à muralha túmida dos acertos memoráveis.
O corpo dos homens é a solução que a alma
amealhou para a hora em que a Eternidade
se impõe a cada criatura como um gemido intransferível.


Nona opção

Ignora-se até onde é levado o homem,
cuja liberdade mordeu uma nuvem de mercúrio.
Que importa? Há que fiar-se dos fios que não têm meada,
e, por não a terem, desprezam as pontas salvadoras.
Vão eles ao encalço do atavismo das flechas,
e, quanto mais distantes, mais contíguos se sentem,
inúteis de si, embora esta contiguidade temerosa
de um ser que não traziam os constranja à loucura
de amarem o que a vida reserva aos indígenas
da profundidade absoluta, que consiste em tentar
só dar a Deus aquilo que, alguma vez, foi do homem.

Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria em 1933. Formado em Teologia, concluiu o Doutorado em Filosofia pela Universidade de Fribourg, na Suíça. Atuou com professor de História da Arte e Estética na Universidade do Rio Grande do Sul entre 1973 e 1986. Autor de vasta obra poética. Dessa produção é possível citar A surpresa do ser, o livro de estreia em 1967, Funilaria do ar (1973), O ferreiro harmonioso (1978), A mesa do silêncio (1982), A dança do fogo (1995) e O canto das criaturas (1998).

* Os poemas aqui publicados são os apresentados na revista Colóquio / Letras n.2, jun. de 1971.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Um poema Ivan Búnin



Mulher de pedra

Grama seca e morta de braseira,
Estepe sem limite, mas ao longe medra o azul.
Há restos cavalares de caveira.
E novamente  a Mulher de Pedra.

Como seu vulto raso é sonolento!
E quão grosseiro é o corpo primordial!
Estou com medo de ti... E tu, timidamente
Me sorris.

Oh! tição selvagem de antiga escuridão!
Foi a ti que adoraram? foi a ti?
 Não Deus nos fez. Não de suas mãos.
Nós fizemos os deuses, servil o coração.

1903-1906


Ivan Búnin nasceu em 1870, em Vorônej, na Rússia, numa família nobre. Começou a escrever muito cedo, e aos 19 anos de idade empregou-se na redação do jornal O Mensageiro de Oriol, publicando em 1891 sua primeira coletânea de poemas. Na virada do século, Búnin começou a adquirir fama literária na Rússia como poeta e tradutor, sendo um grande expoente do verso clássico, passando ao largo das correntes modernistas da época. Em 1920, discordando dos rumos da Revolução de 1917, Búnin fixou residência em Paris, tornando-se uma das principais vozes da comunidade de russos emigrados. Em 1933 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro a ser entregue a um escritor russo. Sua extensa obra é composta principalmente por poemas e textos ficcionais como as novelas A aldeia (1910), O amor de Mítia (1925) e O processo do tenente Ieláguin (1926), o romance de tintas autobiográficas A vida de Arsêniev (1930), e os contos "Um senhor de São Francisco" (1915) e "Respiração suave" (1916). Ivan Búnin morreu em 8 de novembro de 1953, em Paris.

* Tradução de Aurora Fornoni Bernardini.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Cinco poemas de Fernando Echevarría


Era um deserto de luz. A cotovia
Sobre o deserto do deserto andava
A construir a frágil escadaria
Por onde os trilos de cristal criavam
Deserta perspectiva
Espaçando timbres em secura de harpa.
Era um deserto. Pela luz acima
A altura do canto entrava.
E, quando já a cotovia
Perdera o ponto da sua sombra, a estrada
Do horizonte se erguia
Com rispidez diurna de cigarras.

Marraquexe / Paris, 2 / 5 nov. 85


O renque abria à multidão das árvores
A límpida matriz de arruamento
Que progredia só pela saudade
De um puro fora a caminhar pra dentro
Dum ritmo ritmo esclarecido de paisagem
Com avenidas de estremecimento
De renque invicto. Abrindo claridade
Além ainda do conhecimento
De estar a ver pela floresta a grande
Viagem indo pelo fora dentro.

Paris, 16 out. 85


As cidades já vistas e que assentam
No esquecimento da penumbra, acima
Trazem figuras de peso
Que as fundeara ao largo da retina.
Debrua-as o imóvel vento
Das recuadas épocas que haviam
Perdido a história. Mas sustentavam dentro
A inumerável sucessão dos dias.
As cidades já vistas trazem um silêncio
Avassalador. Que as priva
Da extensão. Mas não do tempo
De estarem sendo nomeadas. Lidas.

Paris, 10 dez. 85


É noite à volta do frágil candeeiro.
Um cónico perímetro de estudo
Acende o seu silêncio
E essa paciência que envolvem o assunto.
É noite. O pensamento
Aplica a análise à forma como o mundo,
Palpitando em si mesmo,
Vem à palavra palpitar obscuro.
Mas esta noite de mundo tão intenso
Nomeia-se claríssima no estudo
Que vai correspondendo ao movimento
Com que o silêncio se acende no assunto.

Paris, 5 jan. 86


Há um vento imóvel que quase transfigura
Em si mesmos os bichos e os homens.
Vemos passar pela floresta a sua
Tepidez de covil. Perto da noite,
Um halo de sentidos sensíveis os circunda
E movem a cautela inaugural da fome.
Ou, se pisam a rua,
Quase que vão por onde
Quando eram reis de uma consciência obscura
A palpitar pelos confins da morte.
Há um vento imóvel. Uma paciência, a crua
Caça. E por onde a encantação dos nomes
Relampagueia, unificando a sua
Nomeação à astralidade do homem.

Paris, 2 jan. 86

Fernando Echevarría nasceu em 26 de fevereiro de 1929.  Publicou seu livro de estreia em 1956, Entre dois anjos. Viveu em França, onde se aproximou dos círculos oposicionistas portugueses aí exilados; daí envolveu-se em vários movimentos de luta revolucionária contra o regime militar português. Só regressou a Portugal depois do 25 de abril. Escreveu ainda títulos como Tréguas para o amor (1958), Sobre as horas (1963) e Ritmo real (1971). Premiado reiteradas vezes, com galardões como o Prêmio Pen Clube, Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e Prêmio Nacional de Poesia António Ramos Rosa.   

* Os poemas aqui apresentados foram publicados na edição 113-114 da revista Colóquio / Letras, jan.1990.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Três poemas de António Botto




Bernard Shaw diz que, na vida,
Tudo convém conhecer.
E eu, de tudo,
Mais ou menos dou notícia.
– Só não sei que sabor tem
A fadiga do prazer.


Quem não ama não vive

Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.

Andam pétalas e folhas
Bailando no ar sombrio;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.

Em tudo vejo Saudades!
A terra parece morta.
– Ó vento que tudo levas,
Não venhas á minha porta!

E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim caídas,
Restos de um grande festim!

Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licor!
– Que importa morrer amando,
Que importa morrer d'amor!

E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
– Morro mas levo comigo
Alguma cousa de ti. 

***

Explica-me tu se podes 
Num movimento de calma, 
Porque razão 
Se te beijo num desvairo de prazer 
Às vezes sou todo corpo 
E às vezes sou todo alma?

António Botto nasceu em 1897, no concelho de Abrantes. Aos 24 anos escreve Canções, obra mais importante de sua poética. Viveu algum tempo em Angola onde trabalhou funcionário como público; no regresso, toma posse no Governo Civil de Lisboa e depois é nomeado escriturário de 2ª classe do Arquivo geral de Registo Criminal e Policial. Em 1942 foi demitido da função pública – demissão e não aposentação compulsiva, o que não lhe deu direito a qualquer pensão – por fatos que foram subsumidos ao conceito indeterminado de "falta de idoneidade moral". No ano de 1947, decide partir para o Brasil; morreu no Rio de janeiro, como consequência de acidente, em 1959.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Quatro poemas de Lourdes Espínola




Nascer mulher-poeta

A alternativa:
saltar da varanda; estilhaçá-la.
Saias, leque, fio, agulha:
dispo-me e insurjo-me.
Estou farta de olhar a vida
desta varanda!
Cárcere semicircular
orelha surda, surda boca
grito e falo
do solitário oficio de escrever.
Manuscrito de visões interiores,
espelhos de mulher abrindo-se.
Nasço
rasgando fontes de veneno.


Delmira

Ser contradição ou mulher
é a mesma coisa, afinal,
arder
fingir pudor
calar, cantar
adorar o próprio corpo
engalaná-lo com vestidos
cremes, perfumes e artifícios
tudo envolto cm falsa modéstia.

E ter
a medida exacta,
o olhar virginal
os olhos sorridentes
mas desejando
a longa carícia
que solte os cavalos
do desejo sabiamente reprimido.

Solidão

Com o cheiro dos meus poros,
inclinas-te comodamente
sobre o longo corredor do meu peito.
Órfã de mim mesma,
percorres as minhas entranhas,
reconheces o ten velho território.
Escorpião mordido
pelo seu próprio veneno
vejo-me retorcida
no teu sorriso final.


(DE COMO AS MULHERES ESCREVEM POEMAS ERÓTICOS)

Se escrevesse um poema sobre nós,
seria censurada.
Deixa-me então contar-te
como o junco se faz cana
e espalha lá dentro o seu mel oculto.
Ou falar-te daquela orquídea violeta
de pétalas e pétalas que navegam em seria,
ou de como ela se abre
e entram estrelas
que iluminam o sangue, esse que estava adormecido.
E de como os olhos bebem
o dicionário todo.
Mas façamos um contrato:
a ninguém o contemos
para que este poema não morra censurado.


I
A viagem da minha vida:
suficientemente fechada
para me proteger,
suficientemente porosa
para que tu penetres...


II
A minha roupa virada do avesso,
com as costuras à mostra:
pequenas cicatrizes do meu corpo.
Procurar equilibrar um anjo
nas tuas longas pernas,
é assim que me tens...
e manténs.


III
A lua foi um presente poeirento
- perfeito e único -
que tinha que devolver no dia seguinte:
dependurei-a, pontual,
polida, clara,
dançando na ponta dum fio transparente.

Restaurar o meu corpo,
dar-lhe
luz, cor, movimento
ou talvez um coração espremido
em frases de poemas como fugas.
Um gesto, uma sombra, uma silhueta,
construir com círculos de ritmo
um rosto, uma luz, um carrocel,
ou melhor, uma perfeita analogia.
Restaurar o meu corpo:
Uma abstracção tão luminosa cm seu desejo.

Despi-me toda:
dos dedos ao ventre,
da minha pele à tua,
do meu pulsar à tua mão.
Estendi-me,
a oferenda dos deuses:
palpitante, morna,
balbuciando segredos.
E puseste as mãos
em concha, como ninhos,
e sentiste o fogo
e fechaste os olhos.
A luz brilhante cega
quando não a esperamos.

Lourdes Espínola nasceu em Assunção, Paraguai, em 9 de fevereiro de 1954. Formada nas áreas de Ciências, Relações Internacionais, Humanidades e Literatura, é detentora de títulos adquiridos nas seguintes universidades North Texas State University (EUA), Southwest Texas State University (EUA), Universidad Nacional de Asunción (Paraguai) e Universidad Complutense de Madrid. É poeta, crítica literária e jornalista. É autora de livros como Ser mujer e otras desventuras, Tinta de Mujer Las palabras del cuerpo.

* Traduções de Albano Martins.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Oito poemas de Néstor Perlongher




Águas áreas

I
ACRÍLICO (ACRE LÍRICO) mais que esplendor volume furta-luz luz fria lua aquática sua raia (intersecção de élitros, choque ou ballet de vaga-lumes, niágara) de luva veste a espessura glaceando o manati de uma cutícula de nuvens, cútis nívea, glostosa de nívea, na afetação do trejeito glorioso se dispunha ao agarre da raia, quadriculado na vertigem, craquelê, sem deixar de ser ruína, melado de babas, a rebarba de nácar estirada na borda de sua bainha de valsa, ríspido roque que muda os estremecimentos em núpcias, leves, aladas, quase voiles, manatis sereias, bosques rio, pois o milagre de seu sobressalto, ao descascar, em romãs, os arozinhos de esparto, despertava nele ancas de cisne coruscante, vazio, vagabundo, sua limpidez de penas no leito imprevisto, nonada, só que se deixa levar, ser arrastado, no agito das hélices pela torrente pantanosa, escândalo de espumas a onda-urina, águas de porcelana no jorro de jóias, um portland luminoso ao envolver o polvo como luva, pérola que se revela elástica ou nasce borracha, ferida pelo acre ou o amargor, em delongas marejadas de um unguento encantado.


II
E O QUE SE REVELAVA, na vibração, mais que o cintilar do filamento em sua finura de medusa, a transparência da voz, o gargarejo mucilaginoso traçando liames de cristal entre as vestes, seu oscilar, no ar orvalhado que se dissolve numa porosidade de receptáculos: em cada oscilação o fulgurante dilaceramento da distância em glóbulos de laca, em cada glóbulo uma luz.


III
OPALESCÊNCIA E LIVIDEZ DO RAIO, fumarola de jade em seu deflúvio, arrastava nas rédeas uma coorte de erráticas divindades. Luz divina. Potlatch de luz divina na afluência das nereidas nas ondas, nas espumas das orlas. O granuloso do brocado, em cada glóbulo um soutien, laminado de astilhas, platinado, uma alma granular, fazendo coro ou eco no foro mareado das densas traiçoeiras águas. Espinhas das almas pelas águas, as borbulhas do peixe por riachos de acrílico nevado, adquire seu jade no ofego, o dobrão do ofego na dobragem, a aura amara dos sonhos. Ou no avesso da rendilha, à qual os ofegos, para amansar o estridor, dobravam-se, não morava uma enguia que, superando o fosso, se transformava em águia? Ou era o lagarto das ruínas, por monturos espelhados, deslizando seu rabo faiscante, para iscar na fricção do fole a lisura do jade.


IV
A SAUDADE DO VELUDO ou a ternura de diferir o deslizar das gemas sobre as guedelhas enfastiando-as com um laivo de naviondas chegando e partindo ao mesmo tempo, marinhas transparentes pintadas sobre uma água inquieta mas ao correr da película um ressaibo que sustenta o movimento acampanado, ou de espirais, uma flecha concêntrica, esse melaço rasga o pulmão da vítima do ar num ai ébrio, aberto como uma boca louca e em sua estendida dimensão entra a fateixa da unha na luva de veludo criando calos na frágil distância.


V
REFOLHO DE PLISSÊS de goma em ondas oleosas de incenso ar em volutas rarefeito enobrecido pela ambiência do branco derramando-se do alto de uma mesa estelar onde coruscam burilados cristais azul assume a amplitude celestial do voo do refolho na floresta etérea de lagartos enrolados em finos choupos que chorassem — se de repente são ouvidos — nênias e litanias da alma de meninas à espera de uma emenda de estilo ou movimento ao embalar a impulsão do corpo inteiro no "bailado", se faz bailar bailada a alma de menina assomada entre os rebrilhos do crucifixo de duas tábuas ou quatro braços o corisco da marisma de cristais e fulgores da fímbria e brilhos meros brilhos da luz ganso brilhante no tanque preso como suspenso no aquário aéreo mas se o agitam amplos alentos e hálitos fortes e jogos do corpo pelo vento do couro em alma viva em carne leve esfoliada possante pelos balanços rítmicos da dança, o bailado na vida, a vida no bailado e as tranças se enlaçando no repisar da vibração tremores embarcavam penteando as funduras do ser que em puro abismo o céu figuravam em planícies sinuosas que esse ritmo do bailado alisa e lhe faz frisos de divino esplendor.


VI
O CIRCUITO DE OCELOS o tanque encantado
comove lentamente com a finura de uma
enguia do ar
vermes de rosicler urdindo sob a grama
um labirinto de relâmpagos.


VII
O EMBALO DOS BOTOS nos cabelos líquidos da água, fluvial a gargantilha em suas irisações no córtex da superfície partida como um espelho pelo payé
                      que em resposta à invocação das profundezas adentra submerge de uma ponte especialmente armada para o mergulho ritual e ressurge depois de horas ou dias completamente seco, como se nunca tivesse se molhado, como se as águas mal tivessem alisado os seus cachos, cabelos que se fundem e confundem aos da mãe-d'água que derrama a azulada magnificência e magia de seus dons de aurora.


VIII
A Edward Mac Rae

MÃE DA ÁGUA vestes celestes ouro em chuvisco sobre os
olhos resplandecentes translúcidos através dos quais
a chamada pelos companheiros do fundo se embrenhava num
porto que era um ponto nas águas que davam para o bosque
a titilação incessante de seus cabelos que eram asas de
borboletas imperiais fazendo ondas aquáticas na árvore
do ar e o gorjeio dos pássaros amarelos azuis acrescentava
uma coloração fugaz intempestiva à música de
massas úmidas.


Néstor Perlongher nasceu em Avellaneda, Buenos Aires, em 1949, e morreu em São Paulo em 1992. Poeta de extensa obra, escreveu, dentre outros Austria Hungría (1980), Alambres (1987), Hule (1989) e Parque Lezama (1990).

* Traduções de Josely Vianna Baptista

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Dois poemas de Leopoldo Lugones




A branca solidão

Sob a calma do sono,
Calma lunar de luminosa seda,
A noite,
Como se fosse
O corpo branco do silêncio,
Docemente na imensidão se deita.
E desnastra
A cabeleira
Em prodigiosa folhagem
De alamedas.

Nada vive, menos o olho
De relógio na torre tétrica,
Aprofundando inutilmente o infinito
Como um orifício aberto na areia.
O infinito,
Rodado pelas rodas
Dos relógios,
Como um carro que nunca chega.

A Lua cava um branco abismo
De quietude, em cujo côncavo
As coisas são cadáveres
E as sombras vivem como ideias.
E a gente pasma de tão próxima
Que naquela brancura se acha a morte.

De tão bonito que é o mundo
Possuído pela antiguidade da lua cheia,
E a ânsia tristíssima de ser amado
No coração doloroso estremece.

* Tradução de Aurélio Buarque de Holanda

A última careta

A miséria ri. Com sórdida costeleta
seu cão de guarda lhe regala um festim.
Em suas funambulescas calças vai um poeta,
e em seu casaco o órfão que tem por Delfim.

A fome é seu pandeiro, a lua sua moeda
e o tango vagabundo seu pai-nosso. Crina
de leão, sua coroa. Sua inutilizada escopeta
de mercenário impávido sua uma fugosa fuligem.

Vai em dominó de farrapos, zumbe sua copla irônica,
por véu lhe empresta seu lenço a Verônica.
Seu corpo, de tão chagado, parece um horto em flor.

E sob a ignomínia de tão sinistra máscara
Cristo ensina à noite sua formidável máscara
de cabelos terríveis, de sangue e pavor.

* Tradução de Floriano Martins

Leopoldo Lugones nasceu no dia 13 de junho de 1874, na Villa de María del Río Seco, tradicional cidade da província de Córdoba. Começou a escrever profissionalmente no jornal La Montaña e a partir de então se tornou um dos expoentes do modernismo em seu país. Escreveu prosa (romance e contos) e poesia. Deste último gênero destacam-se Las montañas del oro, o livro de estreia, marcadamente simbolista, El libro fiel El libro delas paisajes. Suicidou-se ingerindo cianureto no dia 18 de fevereiro de 1938 no balneário de El Tigre, próximo a Buenos Aires. 

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Dois poemas de Eugenio Montale



Não nos peças a palavra que acerte cada lado
de nosso ânimo informe, e com letras de fogo
o aclare e resplandeça como açaflor
perdido no meio de poeirento prado.

Ah o homem que lá se vai seguro,
dos outros e de si próprio amigo,
e sua sombra descura que a canícula
estampa num escalavrado muro!

Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos,
e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo.
Hoje apenas podemos dizer-te
o que não somos, o que não queremos.

***

Passar à sesta pálido e absorto
rente dum abrasado muro de horto,
escutar entre sarças e espinhos
cicios de cobra, pio de passarinhos.

Nas ervilhas ou em gretas do solo
espiar carreiras de rubras formigas
que ora se separam ora se ligam
ao cruzarem nalgum monte minúsculo.

Observar entre frondes o palpitar
distante das escamas do mar
enquanto se eleva o tremor estrídulo
das cigarras nalgum alto escalvado.

E andando no sol, encadeado,
sentir como triste maravilha
como é toda a vida e as suas lidas
neste acompanhar uma muralha
que em cima tem cacos de garrafas partidas.

Eugenio Montale nasceu em Gênova em 12 de outubro de 1896. Poeta, jornalista e tradutor. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1975. Da sua vasta obra se destacam os títulos Ossos de sépia, As ocasiões e A tormenta e outras coisas. O poeta morreu em 12 de setembro de 1981, em Milão. 

* Traduções de Renato Xavier.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Dois poemas de Fiódor Sologub



Eu amo o meu chão obnubilado,
E, no prenúncio da eterna despedida,
Não aceito apenas o que é dado
De bom, mas, mansamente, as feridas.

Nada há que recusar à criação -
Pois em tudo há exultante alegria,
No sonhar há uma grande razão,
Há ressaca na árdua porfia.

Ao Espírito magno me inclino,
E no Pai o meu ser se confunde,
Sua criação é tão variegada
E a mim, até o uno é negado!

5 de agosto de 1896

* Tradução de Aurora Fornoni Bernardini


Classificados

Precisam-se de médicos e de enfermeiras.
Assim anunciam os jornais
Precisam-se de alfaiates e de modistas
Quem precisa de poetas?

Onde encontrar um aviso que diga:
"Precisamos de poeta em domicílio
Porque se tornou intolerável
Explicar-se em linguagem comum.

Precisamos de palavras bonitas
Estamos dispostos a entregar nossas almas".
Desejo comprar fazendas.
Precisam-se de vacas leiteiras.

23 de fevereiro de 1916.

* Versão a partir da tradução em língua espanhola de Jorge Bustamante García.


Fiódor Sologub nasceu em 1863, em São Petersburgo e morreu em 1927. Ele foi um dos expoentes do simbolismo russo, que floresceu no início do século XX. Sua obra começou a ser publicada em almanaques na década de 1880, mas foi o ano de 1896 que marcou o início de sua carreira, quando três de seus livros foram publicados: Poemas, o romance Sonhos maus e o livro Sombras: contos e versos

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Quatro poemas de Henriqueta Lisboa




Os lírios

Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos — perfeitos! —
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranquila.


Divertimento 

O esperto esquilo
ganha um coco.
Tem olhos intranquilos
de louco.
Os dentes finos
mostra. E em pouco
os dentes finca
na polpa.
Assim, com perfeito estilo,
sob estridentes
dentes,
o coco, em segundos, fica
todo oco.

Noturno 

Meu pensamento em febre
é uma lâmpada acesa
a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,
à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas
em redor do fogo.


Amargura

Eu chegarei depois de tudo,
mortas as horas derradeiras,
quando alvejar na treva o mudo
riso de escárnio das caveiras.

Eu chegarei a passo lento,
exausta da estranha jornada,
neste invicto pressentimento
de que tudo equivale a nada.

Um dia, um dia, chegam todos,
de olhos profundos e expectantes.
E sob a chuva dos apodos
há mais infelizes do que antes.

As luzes todas se apagaram,
voam negras aves em bando.
Tenho pena dos que chegaram
e a estas horas estão chorando...

Eu chegarei por certo um dia...
assim, tão desesperançada,
que mais acertado seria
ficar em meio à caminhada.

Henriqueta Lisboa nasceu em Lambari, em 15 de julho de 1901. Publicou vários ensaios, livros para crianças e poemas; estes últimos em títulos como Fogo fátuo, seu primeiro livro. Traduziu os Cantos, de Dante Alighieri e parte da obra de Gabriela Mistral organizada na antologia Poemas escolhidos.  Pela sua obra recebeu o Prêmio Machado de Assis. Morreu em 9 de outubro de 1985 em Belo Horizonte. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Três poemas de Adalgisa Nery




Poema natural

Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.


Mistério

Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranquilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.


Escultura

Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...

• 
Adalgisa Nery nasceu em 29 de outubro de 1905 no Rio de Janeiro. Escreveu vasta obra que inclui romances, contos e crônicas. Em poesia publicou Ar do deserto (1943), Cantos de angústia (1948), As fronteiras da quarta dimensão (1952), Mundos oscilantes (1962) e Erosão (1973). Morreu em 7 de junho de 1980.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Um poema de Evguêni Baratýnski



O caminho da vida

No caminho da vida, ao dotar
seus filhos, insensatos,
de sonhos d'ouro, a sorte benfazeja
dá-nos um tesouro.
Lestos, os anos repentinos
de um lugar a outro nos transportam,
e com aqueles sonhos e lances
fatais da vida, nós pagamos.

1825


Eveguêni Baratýnski nasceu em 1800 e morreu em 1844. Tornou-se amigo de Púchkin e foi por este admirado e descrito como “um poeta festivo e languidamente melancólico”. Filho de um general reformado que fez parte do séquito de Paulo I, na infância aprendeu italiano e francês. Aos 12 anos, ingresso no Corpo de Pajens de Petersburgo, prestigiosa escola militar imperial, de onde foi expulso em 1812, por mau comportamento, e proibido de servir, a não ser como soldado raso. Só em 1825 conseguirá uma patente, mas depois de seu envolvimento com os dezembristas, largou a vida militar e mudou-se para Moscou, onde se casou com a filha de um general abastado. Foi nesta ocasião que publicou sua primeira antologia poética (em 1827) e o poema narrativo O baile (1825-28), um retrato mais naturalista da sociedade moscovita; além desses títulos também escreveu Crepúsculo (1842). 

* Tradução de Aurora Fornoni Bernadini.


segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Três poemas de Mahmoud Darwish




Bilhete de identidade

Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono… chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?

Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos…
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?

Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio – sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes…
Foram lançadas antes do nascimento do tempo
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai… é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês – um ser
Sem valor – nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou – Agrada-te?
Sou o meu nome próprio – sem apelido!

Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos… da cor do carvão
Os meus olhos… da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
… esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada…
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens… trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?

Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
… ao que dizem!
… Então

Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!

1964


À minha mãe 

Tenho saudades do pão da minha mãe,
Do café da minha mãe,
Do carinho da minha mãe...
Estou a crescer,
De dia para dia,
E amo a vida, porque
Se morresse,
Teria vergonha das lágrimas da minha mãe!

Se um dia voltar, faz de mim
Uma sombrinha para as tuas pálpebras.
Cobre os meus ossos com a erva
Baptizada sob os teus pés inocentes.
Ata-me
Com uma mecha dos teus cabelos,
Um fio caído da orla do teu vestido...
E serei, talvez, um deus,
Talvez um deus,
Se tocar o teu coração!

Se voltar, esconde-me,
Lenha, na tua lareira.
E pendura-me,
Corda da roupa, no terraço da tua casa.
Falta-me o ânimo
Sem a tua oração diária.
Envelheci. Faz renascer as estrelas da infância
E partilharei com os filhos das aves,
O caminho do regresso...
Ao ninho onde me esperas!

1966


Estrangeiro numa cidade distante

Quando eu era pequeno
E belo,
A rosa era a minha morada,
E as fontes eram os meus mares.
A rosa tornou-se ferida
E as fontes, sede.
- Mudaste muito?
- Não mudei muito.
Quando voltarmos à nossa casa
Como o vento,
Olha para a minha testa.
Verás que as rosas são agora palmeiras,
E as fontes, suor,
E voltarás a encontrar-me, como eu era,
Pequeno
E belo...

1969

Mahmoud Darwish nasceu em 1942 em Al-Birweh e morreu em Houston, 2008. O vilarejo onde nasceu foi inteiramente arrasado pelas forças  de ocupação israelenses em 1948, durante a Nakba, e a família do poeta refugiou-se no Líbano, onde permaneceu por um ano. Voltou clandestinamente ao seu país e descobriu que o vilarejo onde nasceu fora substituído pela colônia agrícola israelense de Ahihud. Foi preso diversas vezes entre 1961 e 1967,  e a partir da década seguinte passou a viver como refugiado até ser autorizado a retornar à Palestina, para comparecer a um funeral, em maio de 1996. Darwich é o autor da Declaração de Independência Palestina, escrita em 1988 e lida pelo líder palestino Iasser Arafat, quando declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino.

* Traduções de Júlio de Magalhães. Os poemas aqui copiados foram publicados inicialmente em no Portal MPPM.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Dois poemas de Rabindranath Tagore traduzidos por Cecília Meireles




Última primavera

Antes que o dia termine,
consente-me este desejo:
vamos colher
flores da primavera
pela última vez.
Das muitas primaveras
que ainda visitarão
tua morada,
concede-me uma,
– implorei.

Todo este tempo,
não prestei atenção
às horas,
perdidas e gastas à toa.
Num lampejo
de um crepúsculo,
li nos teus olhos agora
que meu tempo está próximo
e devo partir.

Assim, ávido, ansioso,
conto um por um
– como o avarento o seu ouro –
os últimos, poucos dias de primavera
que ainda me restam.

Não tenhas medo
Não me demorarei muito
no teu jardim florido,
quando tiver de partir,
no fim do dia.

Não procurarei lágrimas
nos teus olhos
para banhar minhas lembranças
no orvalho da piedade.

Ah, escuta-me,
não te vás.
O sol ainda não se esconde.
Podemos permitir que o tempo
se prolongue.
Não tenhas medo.

Deixa que o sol da tarde
olhe por entre a folhagem
e se detenha um momento
brilhando no negro rio
do teu cabelo.

Faze o tímido esquilo,
perto do lago,
fugir de repente
ao estrépito de teu riso
que irrompe
com descuidosa alegria.

Não procurarei
retardar teus rápidos passos,
sussurrando esquecidas lembranças
aos teus ouvidos.

Segue teu caminho depois,
se teu dever é seguir, se tens de seguir
calcando folhas caídas
com teu andar apressado,
enquanto as aves que voltam
povoam o fim do dia
com o clamor dê seus gritos.

Na escuridão crescente,
tua distante figura
irá fugindo e apagando-se
como as últimas frágeis notas
do cântico da tarde.

Na noite escura,
senta-te à tua janela,
que eu passarei pela estrada,
seguindo o meu trajeto,
deixando tudo para trás.

Se te aprouver,
atira-me
as flores que te dei
pela manhã,
murchas agora ao fim do dia.

Isso vai ser
o último e supremo presente:
tua homenagem
de despedida.


Troca

Ela me trouxe flores de alegria
eu tinha comigo
os frutos da minha tristeza.

Quem sairá perdendo,
perguntei-lhe,
se trocarmos?

Encantada e risonha,
ela disse:
“Então troquemos:
minha grinalda é tua
e aceitarei
teus frutos de sofrimento”.

Olhei para o seu rosto
vi que era de uma beleza
implacável.

Bateu palmas, alegre,
e apanhou
minha cesta de frutos
enquanto eu suspendia sobre o coração
sua grinalda de flores.

Ganhei,
disse ela sorrindo
e retirando-se
logo.

O sol subiu
para o alto do céu
e fazia muito calor.

No fim do dia
sufocante
todas as flores murcharam
e perderam as pétalas.

Rabindranath Tagore nasceu em 7 de maio de 1861. Considerado um dos escritores mais importantes da literatura indiana, condição reconhecida por sua obra, reformuladora da literatura bengali. Feito que servirá a Academia Sueca a nomeá-lo para o Prêmio Nobel de Literatura em 1913, o primeiro não-europeu a receber essa honraria. Embora sua obra seja constituída basicamente por poesia, também escreveu prosa – contos e romances. Tagore morreu em 7 de agosto de 1941.