segunda-feira, 14 de maio de 2018

Quatro poemas de Maria Judite de Carvalho




Eu dantes tinha olhos verdes
Só agora reparei
Verdes, viam tudo verde
por que eram verdes, não sei.

Sorriam àquela flor
Que havia na água parada
Verde flor, na verde água
da vida transfigurada.

Hoje olham e reconhecem
que há muito mais cores para ver.
Cor de flor, que logo esquecem
Cor de charco a apodrecer.

*

Era um rio quente
sem fundo nem fim
ausente-presente
bem dentro de mim.

Quase que parado
via-o eu às vezes
em dia feriado
de seis em seis meses.

Os barcos quietos
boiavam, luziam,
fechados, secretos,
e logo seguiam.

Os velhos, fumando,
olhavam, sem ver,
o rio passando
sem nunca correr.

A virgem tranquila,
terrena, bisonha,
mete os pés na argila,
olha a água e sonha.

Há hoje um cheiro a partir
um cheiro a não estar aqui,
um cheiro a mar verde-pálido,
de algas soltas, sem raízes.
Estou no cais mas não saí.
Tenho um passaporte inválido
para todos os países.


*

Somos do país do sim
o da tristeza em azul
Tudo o que existe é assim
neste sul.
Mostramos o sol e o mar
e vendemo-lo a quem tem,
para podermos aguentar
o que vem
Ah país de fato preto
meu país engravatado
do grande amor em soneto
da grande desgraça em fado.
Antes este veio
descia sem pressa
não era tão frio
como hoje parece.

• 

Maria Judite de Carvalho nasceu em 18 de setembro de 1921, em Lisboa. Frequentou o curso de Filologia Germânica. Em 1949, ano quando se casou com o escritor Urbano Tavares Rodrigues, foi viver na França, em Montpellier e a seguir em Paris. No retorno, em 1959, publicou Tanta gente Mariana. Dois anos depois, com As palavras poupadas ganhou o Prêmio Camilo Castelo Branco. Foi redatora dos jornais Diário de Lisboa (1968-75), da revista Eva (até 1975) e de O Jornal (1976- 1983). Escreveu romances, contos, crônicas e poemas. Morreu em 18 de janeiro de 1998, em Lisboa.